Norton Cezar Dal Follo da Rosa jr (*)
Recentemente estive em minha cidade natal. Sempre que posso, retorno para rever familiares, amigos e colegas de trabalho. Cultivo com carinho essas relações, pois os encontros são prazerosos e festivos. Andar pelas ruas da cidade, ainda hoje, é algo que me agrada bastante, talvez porque assim pareço resgatar uma certa nostalgia dos companheiros de travessia de minha adolescência. Naquela época, meados da década de 80, era comum os jovens andarem pelas ruas em busca de festas, saraus e ensaios das inesquecíveis bandinhas de garagens.
Cidade universitária, localizada no coração do Estado, Santa Maria despontou, em algum momento, como um lugar possível para uma boa parcela da juventude da região expressar seus sonhos, compartilhar suas angústias e desejos de relançar a vida. A canção de Beto Pires é uma bela ilustração desse espírito:
Sol na Praça, presidente, quente é teu calor
Muita banda na varanda e na orelha um cobertor
Tanta vida diferente, tanta gente vem e vai
Incerteza de quem entra, mas saudade de quem sai…
Nos últimos anos, quando retorno à cidade das minhas origens, tenho encontrado um cenário bem diferente: ruas esburacadas, espaço público depredado, segurança pública precária… Nada de novo, considerando a triste realidade social, política, econômica, jurídica e cultural do Brasil. Até mesmo a crescente vontade de ir morar em outra cidade, manifesta no discurso de muitos, não me chamou a atenção haja vista o expressivo número de brasileiros que também desejam emigrar do país. Mas, algo despertou em mim quando ouvi um adolescente de 17 anos tomar a palavra entre os adultos e dizer: – “Isso não é nada: e a Tragédia da boate Kiss, [silêncio…], o surto de leptospirose e essa tal de toxoplasmose, isso é o caos. Mesmo com tudo isso, ninguém reage”.
“Ninguém reage…” Essas palavras ficaram ecoando em meus ouvidos. Trata-se de um jovem que testemunhou a vida de muitos outros serem ceifadas de forma absolutamente violenta, criminosa e irresponsável. Ele está certo, a sociedade precisa sair dessa morbidez, reagir e exigir justiça. A indiferença, o conformismo e a apatia são sintomas evidentes de uma pulsão de morte que anula a nossa capacidade de resistir a tanto descaso, falta de responsabilidade e descuido com o outro. Ali, naquele pequeno grupo, aquele adolescente tentava reagir em busca de alguma indignação coletiva, mas o máximo que obteve de retorno foram algumas cabeças balançando numa espécie de um silencioso sinal de consentimento. Logo após o evidente mal-estar, alguém respirou fundo e a conversa seguiu em outra direção.
Freud em seu clássico, O mal-estar na cultura, destacou três origens para o sofrimento humano: a natureza, ao assumir a forma de catástrofes (terremotos, maremotos); o organismo através das manifestações das doenças; e, por último, o que ele considerava mais cruel, o próprio homem ao conviver com o outro e estabelecer relações de indiferença, exploração e iniciar guerras. A fala daquele adolescente, levou-me a pensar nessa terceira forma de violência destacada por Freud, sobretudo, naquilo que diz respeito à indiferença, ao emudecimento e à incapacidade de reagir.
Reagir é pulsão de vida, é ter a coragem de enfrentar os problemas e a esperança de transpor os obstáculos. Não podemos deixar no abandono a voz deste jovem que nos convoca a fazer algo com a nossa indignação. Ele acredita na força da resistência, talvez, simplesmente por saber que precisamos do outro para agenciar mudanças coletivas.
Há aí um desejo de poder continuar cantando com orgulho:
Santa Maria, maria da graça, doce menina, maria fumaça
Verde tão verde tão cheia de si
Que da vontade de cantar pra ti
(*) Psicanalista, Membro da APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.
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