Colunas>Coluna APPOA
|
3 de julho de 2018
|
10:40

O pai da menina morta (2018)

Por
Sul 21
[email protected]
O pai da menina morta (2018)
O pai da menina morta (2018)
Divulgação

 Luciano Mattuella (*)

Não se deve nunca julgar o nome que as crianças dão para seus animais de estimação. Morei sete anos no interior do Rio Grande do Sul, entre a segunda e a oitava série. Lá, tive dois cachorros: primeiro, o Dragon, um cão ovelheiro esguio e elegante, fiel de modo quase formal, altivo em seu modo de equilibrar-se na estreiteza do muro para vigiar a nossa casa. Era como se o Dragon tivesse vindo ao mundo com a missão de proteger aqueles que o acolheram – um cachorro de inteligência surpreendente que somente poucas vezes se permitia brincar.

Nos dias mais frios de inverno, chamávamos ele para dentro de casa, onde dormia junto à lareira acesa. Parecia aconchegado, mas eu percebia que uma parte sua sentia que deveria estar lá fora, cuidando da casa. Sabe-se lá com o que sonhava nessas noites. Quando Dragon morreu, minha família enlutada adotou uma de suas crias – dei a este novo habitante da casa o nome de Júnior, talvez porque quisesse que nele existisse algo do cão perdido, talvez porque eu andava naquela época às voltas com a pergunta sobre o que se herda de um pai.

Júnior, por sua vez, era brincalhão e agitado, quase bobo. Era também muito fiel, mas seu modo de viver tinha algo de pueril, quase ingênuo. Não sabia medir bem o perigo e, por via das dúvidas, avançava sobre todo mundo que passava muito rente ao portão da casa – pecava pelo excesso. Quando voltávamos de uma viagem um pouco mais longa, Júnior rapidamente nos perdoava pela ausência e se desfazia em carinho desmedido. Era um cão com bom coração.

A julgar pelo primeiro parágrafo de “O pai da menina morta”, creio que o estreante Tiago Ferro teria preferido a sinceridade ingênua de Júnior ao zelo contido de Dragon: “Sempre uso camiseta, jeans e tênis. Sinto pena dos homens elegantes. Como se não bastasse colocar e tirar tantas máscaras sem parar, ainda desperdiçam tempo com o figurino. Prefiro me concentrar no roteiro. A Minha Filha morreu no dia 26 de abril de 2016”.

Tiago Ferro começa sua carreira na literatura com uma despedida. “O pai da menina morta”, publicado este ano pela editora Todavia, é um romance impossível, porque convida o leitor a testemunhar algo que somente o autor pode experienciar. Não há personagens com os quais se identificar: somos lançados na nossa própria história, nas lembranças dos que perdemos, na reminiscência de quem fomos e nunca mais poderemos ser. É um livro escrito por um pai em luto. Tiago Ferro não se resigna à narrativa cronológica, mas faz uso de fragmentos que vão compondo e desfiando um tecido esfarrapado. Aos leitores cabe coser os parágrafos com as suas próprias vidas.

A história da morte de sua filha de oito anos é entrecortada por comentários sobre o mundo, como este, por exemplo: “O Trump prometeu construir um muro para separar os Estados Unidos do Estado Islâmico. O Trump também prometeu comer o cu de cada mexicano que insistir em tomar tequila e ouvir Santana nas periferias de L.A. depois do toque de recolher latinos”. Trump, aliás, um homem que separa filhos dos pais – peço desculpas ao leitor por estar já eu aqui reescrevendo o romance. Tudo para Tiago Ferro está sob a sombra da Filha Morta: “As pessoas gostam de assistir a filmes de veteranos de guerra (…). Quando acaba a sessão, dá vontade de chorar, mas depois de quinze minutos, na fila para o pão de queijo com café, parece que tudo está no seu devido lugar. Eu me tornei esse filme de guerra”. O autor nos lembra que, quando alguém morre, também morre um mundo inteiro, toda uma narrativa do que poderia ter sido.

Em certo ponto do livro, Tiago Ferro lembra de um sonho: “Sonhar que na árvore que se vê da janela do meu quarto de hotel há sete lobos brancos sentados nos galhos como se fossem pássaros. Me esperando”. Para os colegas psicanalistas, impossível não lembrar do sonho paradigmático de um caso clássico de Freud, o chamado “Homem dos Lobos”. No sonho do Pai da Menina Morta, entretanto, há um lobo a mais do que no do paciente de Freud – e eles se transformam em pássaros. Em que se transformam aqueles que morrem?

A este sonho do autor, associei os dois cães que dividiram comigo a infância – os de nomes que não devemos julgar. Associei não apenas pelo parentesco entre o lobo e o cão, mas também porque foram estes cachorros que inscreveram em mim a noção de que toda história tem um fim. Quando Júnior morreu, aprendi com o meu pai, sem que ele jamais tivesse sabido disso, a delicadeza de atravessar um luto: meu pai usava a agenda não apenas para marcar seus compromissos, mas também para lembrar-se do que aconteceu. Em uma dessas desmedidas curiosidades infantis, eu abri a sua agenda preta em busca do dia em que Júnior havia morrido. Encontrei ali a seguinte frase: “Hoje o Júnior sentiu saudades do seu pai e foi visitá-lo no céu”. Só muitos anos depois, quando precisei dar conta de outra morte, entendi que meu pai lidava com o luto transformando a perda em escrita. E que todo escrito é uma forma de esculpir a ausência em algo a ser transmitido.

Em sua agenda, o meu pai era ridiculamente sincero, assim como Tiago Ferro é em seu romance. Ao fim do livro, resta a sensação de que, quando em luto, é impossível não nos tornarmos uma caricatura de nós mesmos. Não há nada mais despudorado do que chorar pela morte de alguém querido. O luto nos lança em uma dimensão oculta, mas também escancara aquilo que temos de mais íntimo: é o absurdo da sinceridade. Tiago Ferro se apresenta neste seu primeiro romance de jeans, camiseta e tênis – não se importa com a elegância.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora