Colunas>Coluna APPOA
|
17 de julho de 2018
|
10:24

Desobediência

Por
Sul 21
[email protected]
“Desobediência”, de Sebastián Lelio. (Foto: Divulgação)

Maria Ângela Bulhões (*)

O filme Desobediência encontra-se em cartaz no circuito de Porto Alegre e merece ser assistido por muitos apreciadores do cinema. Foi dirigido por Sebastián Lelio e protagonizado por Rachel Weisz, em excelente performance. A história acontece em Londres e traz a temática do conservadorismo de uma comunidade judaica e os problemas enfrentados por duas mulheres que possuem desejos homoeróticos.

A história desenvolve-se a partir da morte de um rabino e a chegada dessa notícia para sua única filha que agora vive em Nova York. Afastada de sua família há bastante tempo, ela decide retornar para sua cidade para estar presente nas homenagens fúnebres. Aos poucos, vamos sabendo que seu afastamento da comunidade aconteceu em função de seu envolvimento sexual com sua amiga de infância. Nesse retorno, vemos que alguns personagens envolvidos na trama começam a questionar escolhas que haviam feito em suas vidas.

No último discurso do rabino, antes de sua morte, ele tratava sobre o tema do livre arbítrio e da liberdade. Como pensar essa temática dentro de uma comunidade que determina rigidamente a forma de seus membros se comportarem?

Será que a ideia da liberdade pode trazer consigo o imaginário do descontrole? Freud, em seu texto O Mal Estar na Cultura, nos falava que o indivíduo deve abrir mão de realizar parte de seus impulsos agressivos e sexuais para poder assim fazer parte de um grupo. Em troca, o grupo lhe daria a segurança e o cuidado. Assim, se realizaria o pacto social. Freud também nos diz que esse pacto será transmitido pelos pais e pelo grupo social, tornando-se, assim, um elemento inconsciente de cada um (superego), que fará o papel de contenção interna. A contenção externa mais primitiva será substituída por essa consciência interna na determinação do certo e do errado.

O imaginário humano está sempre prevendo a catástrofe da irracionalidade, aquilo que poderia emergir da parte mais primitiva do sujeito e fazer com que os demônios de cada um ameacem a todos. Essa fantasia pode produzir retrocessos em nossa sociedade, na medida em que induz a crença coletiva de que: ou existe uma contenção externa rígida, ou nosso lado B tomará conta. Na verdade, quando conseguimos nos desvencilhar de nosso medo mais infantil, de perder a proteção de nossos pais devido às nossas transgressões, estamos no tempo de nos tornar mais responsáveis por nossas próprias ações. Essa responsabilização própria é resultado de um processo civilizatório baseado na educação.

Educar é orientar alguém sobre os valores da cultura; é ensinar sobre a importância de fazer escolhas e arcar com as consequências dessas. Escolher sempre implica em ganhar e perder. Ou seja, significa elaborar renúncias para participar do coletivo. Portanto, a educação é a melhor forma de produzir o pacto social. Assim, podemos começar a falar em livre arbítrio e liberdade.

Por outro lado, a desobediência faz parte de qualquer processo de mudança. Romper com o estabelecido, com a ordem, pode ser a única forma para a criação do novo. O conflito entre o estabelecido e o que está por vir é inerentemente humano. O mundo está sempre em transformação, e as regras de comportamento também vão sendo modificadas.

Por vezes, é necessário que a geração anterior morra para que as aberturas se processem. Quem morre leva junto crenças de uma época e deixa espaço para que outras possam ser criadas. O movimento das ideias diz respeito ao que está vivo. O museu é o local que nos mostra as crenças de cada época e nos explica que é porque mudamos que ainda habitamos esse planeta. É claro que mudanças muitas vezes são difíceis e assustam, mas não acompanhá-las implica numa certa mumificação. Forças conservadoras e forças transgressoras estão cotidianamente produzindo tensão no individuo e também no coletivo.

Esse conflito é presente na aceitação da homossexualidade na nossa sociedade. Vivemos um movimento de mudança nos costumes, de modo que as diferentes orientações sexuais já não podem ser negadas pelos conservadores desta época. Não há anormalidade na homossexualidade e essa crença, que já não é nova, cobra seu espaço de reconhecimento hoje no mundo.

Parafraseando Raul Seixas: prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter a velha opinião formada sobre tudo.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora