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29 de maio de 2018
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10:27

Encontros na Praça Brasil

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Sul 21
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Encontros na Praça Brasil
Encontros na Praça Brasil
Grace Passô interpreta Glória em “Praça Paris”, de Lucia Murat. (Foto: Divulgação)

Sandra Djambolakdjian Torossian (*)

Vivemos um momento inexplicável. Por mais esforços que façamos nossos significados para as experiências dos últimos anos serão sempre limitados. Ao concluir uma explicação, mil outros fios surgirão do complexo emaranhado de ideias e sentimentos.

Incertezas nos invadem. Não as incertezas comuns a qualquer vida, mas aquelas produzidas propositalmente para criar um clima de caos, quando a desordem torna-se o projeto-país.

Um país que nos últimos dias para nas estradas com reivindicações que clamam por liberdade ao mesmo tempo em que, inexplicavelmente, pedem intervenção militar. Empresários e trabalhadores autônomos que, misturados, exigem mudanças no preço dos combustíveis, mas não olham para a mudança da política de exploração do petróleo nacional que coloca em primeiro plano os interesses estrangeiros.

Em meio a esse confuso emaranhado, as políticas repressivas tomam a frente das saídas exigidas para que a vida circule normalmente. Políticas repressivas que nomeiam elogios à ditadura  civil-militar com saudades de um dos momentos mais cruéis da história do Brasil

Os absurdos jurídicos do último ano, a desigualdade social que habita o país há mais de 500 anos e os interesses das castas governantes não fazem qualquer eco e, sendo jogadas para baixo do tapete, dão lugar a notícias momentâneas que desviam a atenção de milhões de cidadãos.

O Brasil na Copa, a falta de combustível, a possível calamidade que deixará a classe média com fome surgem como problemas maiores, fazendo com que a fome histórica, a miséria e as diversas desigualdades pareçam meras ilusões.

Nesse complexo novelo de fios paradoxais saliento um retrato apresentado pelo filme Praça Paris (2018) de Lucia Murat. Filme protagonizado por Grace Passô e Joana de Verona, atrizes que interpretam uma paciente e sua terapeuta, oriundas de diferentes classes sociais e que vivem diferentes realidades raciais.

Glória, interpretada por Grace, é uma mulher negra, que no elevador da universidade tenta fazer sua vida alçar voo ao acompanhar as subidas e descidas dos estudantes. Tenta decolar quando, ao não tolerar o sofrimento das violências a que foi submetida desde a infância, por habitar o mundo da favela – do outro lado da rua da universidade –  busca a ajuda da Camila, terapeuta portuguesa e estudante de pós-graduação.

Através da confiança produzida pela relação terapêutica, Glória confia também na fala como processo de cura. E é assim que vai apresentando, à sua terapeuta, algumas versões de uma vida submetida às mais diversas violências. Apresenta, também, suas estratégias de sobrevivência.

Ancorada, talvez, em teorias que não incorporam a realidade do racismo e do sofrimento de boa parte da população brasileira, ou fazendo aparecer o susto produzido pela ausência de espaços de alteridade que fazem parte da formação dos terapeutas, Camila sucumbe ao medo e se deixa enredar no confuso emaranhado das políticas repressivas as quais, desconhecendo o sofrimento e a crueldade de quem habita zonas esquecidas da cidade, clamam por saídas totalitárias. E assim reproduz a violência e as políticas de eliminação que matam sempre os mesmos.

Praça Paris é uma boa crítica a determinados modos de escutar o sofrimento. Modos que repetem, sem fim, a violência da desigualdade com conceitos que não se movimentam e são aplicados sem qualquer questionamento e sem qualquer noção de contexto.

Uma crítica ao academicismo que não se deixa permear pela realidade cruel dos seus vizinhos, aqueles que costumam ser eliminados.

Um alerta para a necessidade de revisão da formação em Psicologia.

(*) Psicanalista. Membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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