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15 de maio de 2018
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10:28

Desvontade

Por
Sul 21
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“Algumas vezes escutamos o uso da expressão ‘caiu em depressão’, como se fosse algo repentino”. (Foto: Marcos Santos / USP Imagens)

Maria Ângela Bulhões (*)

O trabalho de escutar pessoas, que falam de seus sofrimentos, pode parecer uma tarefa difícil e muitas vezes insuportável. Por vezes me perguntam: como tu podes escutar tudo isso?! Não tenho a resposta, nem a certa, nem a pronta, mas posso dizer que em muitos momentos aquilo que escuto, ainda que imerso na dor de quem me fala, constitui aos meus ouvidos algo poético.

Semana passada, fiquei tocada ao escutar um homem muito simples falar da sua condição depressiva. Ele questionava intrigado sobre “aquilo” que lhe acontecia. Insistia em dizer que não tinha sido sempre assim. Antes não estava daquele jeito! Mesmo que esse “antes” não pudesse ser muito bem definido.

Ele perguntava-me o porquê daquela “desvontade”. Explicava-me que a vontade foi embora. Agora, só queria ficar na sua, sozinho. Não queria falar com ninguém, não tinha vontade de nada! Era uma “desvontade” mesmo!

A dor de não ter vontade alguma é tão relacionada com a condição de morte do sujeito, que a busca por palavras que falem disso pode ser uma tarefa árdua. Sendo assim, aquela expressão, dita de forma tão contundente, me sensibilizou profundamente. A “desvontade” parecia estar carregada de uma liberdade poética que permitia expressar, sem rodeios, o que lhe fazia sofrer. A escolha dessa palavra, refletindo a simplicidade da linguagem daquele homem, pareceu-me uma interessante possibilidade de expansão do português. Uma tentativa de dar sentido a algo que lhe parecia totalmente fora do sentido.

A depressão, por vezes, apresenta-se assim; pela via do inexplicável, fazendo poucas conexões com suas causas.

Por isso mesmo, algumas vezes escutamos o uso da expressão “caiu em depressão”, como se fosse algo repentino.

Depressão também pode se apresentar como aquele buraco do qual é difícil sair.

Cria-se um enigma sobre a origem desse mal. Existe algo de insabido, de inexplicável que acontece com o sujeito. Ele se desconhece daquele jeito. A partir daí, o indivíduo passa a questionar sobre si mesmo, sobre sua história e os personagens que constituem essa vida.

Quando está tudo bem, não costumamos inquirir muito de onde surgem nossas vontades, elas aparecem como se fosse de sua natureza estar por ali. São essas vontades que nos deixam animados com nossos projetos, mantendo aberta a possibilidade da renovação.

Isso não significa que não existam para todas as pessoas os momentos de “desvontades”, aquela sombra que encobre momentaneamente o ser, ou mesmo aquele tempo da “ressaca das vontades”. Mas a passagem por dias de total indiferença não necessariamente afeta a condição da viagem.

É no espaço da análise que investigamos mais atentamente a origem de nossas vontades. Com esse olhar mais atento percebemos que caminhos e descaminhos que nos levaram a diferentes destinos não são apenas circunstanciais. Ali, no divã, tomamos nosso destino nas mãos e reafirmamos nossos quereres.

Mas e quando a “desvontade” toma conta? Do que se trata? Era disso que meu paciente falava. Quando encontramos alguém que ficou na paralisia da dor, encontramos alguém à deriva. Por vezes, até o olhar está perdido. As palavras usadas por esse sujeito para dizer de si é que permitirão ao analista encontrá-lo; elas darão as coordenadas geográficas de onde está e possibilitarão a criação de novos sentidos.

Cada um vai formular do seu jeito, e com suas próprias palavras, sobre o caminho que trilhou até ali. O analista que o escuta vai ser testemunha daquela história e pode acompanhá-lo e auxiliá-lo na constituição da condição de desejante.

Quem está no entorno pode sentir-se impotente, sem saber bem como auxiliar, querendo que tudo volte ao normal. Todavia, é preciso compreender que são nesses momentos de crise, de tristeza mesmo, que certezas podem ser questionadas. Não está tudo bem, se enganar pode ser pior. Talvez o que eu considere poético na fala de meus pacientes seja essa condição de sofrimento, que, ao mesmo tempo, insinua a capacidade para a “criação do algo novo”. Pelo menos foi assim que escutei a palavra “desvontade” na boca desse paciente: com potencial e força de expressão. Existia uma indignação que acompanhava aquele desabafo.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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