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10 de abril de 2018
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10:21

Caímos na real, 7 de abril de 2018

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Caímos na real, 7 de abril de 2018
Caímos na real, 7 de abril de 2018
Foto: José Bernardes/Brasil de Fato

Alfredo Gil (*) 

Freud escreveu em 1924 um texto que se chama « A perda da realidade na neurose e na psicose ». No que pretendo aqui desenvolver não são as entidades psicopatológicas que me interessam, mas outros aspectos tratados neste texto que dizem respeito à « realidade », àquilo que dela se perde e às coisas que a substituem. Sua experiência o levou rapidamente, no final do século XIX, à evidência de que o tratamento psicanalítico aconteceria entre a realidade do acontecimento (traumático) e as lembranças deste, constituídas também de esquecimento, e sobretudo talvez, da realidade discursiva do paciente que busca reconstruir e dar continuidade às lacunas entre o que foi e o que é, no momento em que o paciente narra seu sofrimento. Em outros termos, e para voltar a Freud, a realidade em si não existe. O que existe, mais ou menos voluvelmente, são modulações singulares de apreensão subjetiva do mundo dito externo. Podemos pensar na experiência estética, por exemplo, quando dizemos « gosto não se discute ».

Deduzimos então que uma das descobertas freudianas, além de conceber novas relações entre realidade subjetiva e mundo exterior, foi a de demonstrar que a realidade que funda o cerne do ser repousa numa perda em torno da qual objetos ganharão valores e funções variáveis na economia subjetiva de cada um. Exemplo cotidiano destas considerações, que podem parecer abstratas, é a função do « doudou » na vida de uma criança, mas também na dos pais e na dos profissionais que dela se ocupam em creches. O “doudou” é o paninho meio sujo ou a boneca estraçalhada que a criança carrega com ela quando transita em outros lugares que o lar doce lar, e cuja função é a de manter a presença da realidade familiar junto a ela. É um artifício (verdadeiro) de conservar conforto familiar em terra estrangeira. Este objeto que tem a propriedade de apaziguar a criança, e muitas vezes, também, os pais e os profissionais, devemos ao psicanalista inglês, Winnicott, que o denominou “objeto transicional”. Tem-se aí, neste objeto, um ponto da realidade exterior no qual a criança pode se agarrar e suportar as adversidades do mundo externo, tanto quanto a angústia vivida internamente. Sabe-se também que alguns nunca o abandonarão, ou seja, o dito objeto não transitará mais, pelo contrário, ele se fixará e se « fetichizará », levando assim seu nome de objeto fetiche. Em outros termos, e nos termos de Freud, « a perda da realidade » familiar que a criança sofre neste momento é suprida por um pedacinho suficientemente importante que apazigua o medo de separação e de perda que a transição entre o lar e outros lugares suscita.

Suprir é sinônimo de com-pensar ; ou seja, não basta que os objetos circulem a minha volta para que realidade ganhe em consistência me dando o sentimento de permanência das coisas e segurança psíquica; para que isto seja possível, a criança tem que pensar-com a perda, inerente aos diferentes tempos da vida.

Atenção. Não podemos descambar para um relativismo psicológico que diz que tudo é realidade subjetiva e que o mundo não seria outra coisa senão o produto de uma “interpretação pessoal”. De fato, há situações em que nossa relação com a realidade se estrebucha, nos dando o sentimento de perdê-la e de estarmos perdidos.

Em 2001, crianças que assistiram na tv aos ataques contra as Torres Gêmeas de Nova York, várias vezes e em diferentes ângulos, como todos nós, pensaram que vários prédios tinham sido destruídos. Sem dúvida que após a chegada da tv nos lares, mais ainda a partir dos anos 80, com a introdução do mundo digital no cotidiano das pessoas, dos primeiros computadores, nossa relação com a realidade se estendeu, se acelerou, se virtualizou, modificando e complexificando nossa capacidade de discernimento. Por outro lado, é verdade que nosso mundo psíquico é complexo, e podemos ter a experiência de um objeto que age sobre nossa intimidade sem que haja a presença real do que quer que seja no mundo sensível. O fenômeno alucinatório é o melhor exemplo, e seria um absurdo contestar a veracidade de alguém que não consegue mais dormir porque todos os vizinhos – o de cima, o de baixo e os dos lados -, fazem barulho, arrastam cadeiras, falam alto, sempre na hora em que vai para a cama; e ele tem certeza absoluta de que fazem isto para impedi-lo de dormir. Qualquer que seja a materialidade do objeto – outro que eu mesmo – que me afeta, um certo tipo de relação se estabelece, e, às vezes, a dificuldade é a de saber qual ângulo e perspectiva ocupo para estabelecer a veracidade das coisas.

A situação que funda tais considerações é a seguinte: tenho ouvido, visto e lido coisas nestes últimos anos que me chegam do Brasil, pedaços de cenas da realidade brasileira de extrema violência, sobretudo nestes últimos dias, que provocam um profundo sentimento de impotência, mas que hoje, dia 7 de abril, vendo Lula ser preso fiquei absolutamente pasmo: “mas isto é verdade? Está acontecendo mesmo ?” Claro que sim.

A escolha de uma criança sobre o que constituirá seu objeto transicional é bastante limitado e relativa, permitindo-a de modelar sua relação com a realidade, com os outros. Mas o adulto, por mais alienado que seja na sua própria captação subjetiva, mantém-se responsável por suas escolhas, atos e palavras. A transição radical que se vive atualmente no Brasil distorce e perverte as relações entre realidade e verdade.

(*) Psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  


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