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2 de janeiro de 2018
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09:05

Com Kazuo Ishiguro

Por
Sul 21
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Com Kazuo Ishiguro
Com Kazuo Ishiguro
Kazuo Ishiguri recebeu o Nobel de Literatura de 2017. (Divulgação)

 Lucia Serrano Pereira

Iniciando 2018 voltando a ler Ishiguro. Entrada de ano sempre anima um clima de recomeço, aura solar, inaugural. No contraste; Noturnos – histórias de música e anoitecer. É crepuscular e não recua dos desencontros e desvãos da vida. Mas tem uma “orquestração”, a particularidade de ser composto em torno da música. Seus personagens – um violonista nos cafés em Veneza, o saxofonista que parte para uma intervenção inusitada, o violoncelista na temporada de verão italiano, e outros – ancoram a experiência em trechos de vida como trechos musicais. A intensidade que perpassa através da música para cada um enlaça e trabalha os dramas e as questões que enfrentam.

Há pouquíssimas semanas, agora mesmo em dezembro, Kazuo Ishiguro “escreveu” mais um de seus contos trazendo também marcas e pontos de concentração que configuraram sua vida e sua trajetória de escritor. Destaque para aqueles momentos turning points deste autor japonês/inglês que recebeu o Nobel de Literatura de 2017. “Escreveu” entre aspas porque foi o discurso com o qual ele acolheu o prêmio. E que podemos escutar como um belo conto compartilhado com o “leitor”.

Conta do momento aos 24 anos, ele, criado nos condados do sul da Inglaterra, cabeludo e ainda com ecos do movimento hippie, quando vai para uma pequena vila perto de Norfolk, aceito para um ano em um pós grado de Escrita Criativa na universidade. Alugou um quartinho, chegou com a mochila o violão e a máquina de escrever. E passou meses vivendo um silencio e uma solidão que ele marca como o início de sua transformação. Revisava dois contos já escritos, coração na mão sem saber se estariam à altura do curso e dos colegas. E em certa noite, se surpreende escrevendo com uma intensidade inusitada sobre o Japão, mais especificamente Nagasaki, sua cidade natal. Nunca havia sido seu tema. Era um jovem com temas ingleses, ocidentais, podemos dizer. Ainda não havia surgido nada como multiculturalismo, como o movimento que hoje seria quase óbvio do jovem escritor buscar explorar suas raízes. Com receio levou o novo escrito aos colegas, que o incentivaram. Sem isso, ele diz, talvez nunca mais teria escrito sobre o Japão. Meses cruciais. De onde saía essa peculiar energia? Ele se perguntava.

Conta que chegara à Inglaterra aos cinco anos, com a família. Uma Grã-Bretanha que já desapareceu, 1960, onde aprendeu os códigos. Logo, menino ainda, soube como se portar no social, que precisava pedir licença para sair da mesa, na casa de algum coleguinha, que havia uma pequena oração antes das refeições , e outros mil detalhes. Talvez aí o berço, na obra de Ishiguro, da força impressionante dos detalhes na narrativa; lembram o ambiente inglês de Os vestígios do dia? Mundo duro, das submissões e dos silenciamentos, e que ele pega de dentro, podemos dizer. Ao mesmo tempo é grato à acolhida que a família recebeu da pequena comunidade inglesa na qual viveram, pois afinal, há poucos anos os japoneses haviam sido os inimigos…

Me impressionou, assistindo sua fala/conto, o quanto Ishiguro nos oferece algo especial. A riqueza da operação da criação da ficção em uma simplicidade; coisa que não é fácil.

Ele segue na interrogação daquele tempo do inicio da escrita: por que lá, naquele momento, escrever sobre o Japão? Diz que seu pai tinha a intenção de voltar para o Japão com a família em um ano ou dois. E que os primeiros onze anos na Inglaterra viveram em um estado de provisoriedade constante pois estavam sempre voltando para o Japão no ano seguinte…

Assim que no interior da casa, a vida era diferente com seus pais japoneses, outras normas, língua, valores. Seguiu recebendo um pacote do Japão todos os meses – revistas, periódicos, quadrinhos, até a adolescência, coincidindo talvez com o tempo da morte do avô. Enquanto crescia, muito antes de sequer pensar em escrever ficção, se ocupava em construir na sua cabeça “um lugar cheio de detalhes chamado chamado Japão” (os detalhes novamente…). Um lugar que tinha a ver com algo de identidade e confiança.

Um Japão tanto mais pessoal e íntimo quanto mais o criava em seu próprio imaginário. Kazuo Ishiguro afirma então que foi aí que precisou escrever, por se dar conta de que seu Japão talvez não correspondesse a nenhum lugar que pudesse ir com uma passagem de avião. Escrever para preservar, dar forma a isso que adentrando os vinte ele se dava conta de que começava a se desfazer, a perder os contornos. E quis então sustentá-lo, reconstruí-lo na narrativa, para depois poder apontá-lo em um livro e dizer: “Sim, aqui está meu Japão, nestas páginas”.

Como Proust tira toda Combray de dentro de uma taça de chá – leitura que Ishiguro refere também o fascínio e que vai incidir sobre seu estilo. O que o impacta em Em busca do tempo perdido? Principalmente a maneira pela qual Proust enlaça os elementos, atravessando os tempos, associativamente. Pensemos nas viagens surpreendentes da memória involuntária proustiana que é também próxima ao funcionamento do inconsciente, na trama das fantasias. Escrever como um pintor abstrato, Ishiguro formula. Escrever ouvindo algo que quebra na voz de Tom Waits cantando Ruby’s Arms (do álbum Heartattack and Vine)- quando a canção diz de um coração partido e que em um momento toma incrível força no canto, na voz, para além do conteúdo da letra da canção. Tensão insuportável e comovente para ele. Voltamos a encontrar o musical neste pequeno fragmento da fala de Kazuo Ishiguro, ressoando com o Noturnos, que leio agora. Nestas bordas, o estilo, o que nos captura e anima o enigma do encontro com o texto. Lendo Ishiguro nestes primeiros dias do ano, tempo de menor velocidade que nos permite adentrar por estes detalhes, vestígios, nuances. Privilégios da leitura.


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