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9 de janeiro de 2018
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09:43

A ausência que já somos

Por
Sul 21
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O médico Héctor Abad Gómez e seu filho, o hoje escritor Héctor Abad Faciolince. (Foto: Centro Nacional de Memoria Histórica/Colômbia)

 (*) Maria Ângela Bulhões

Em minhas últimas férias tive a oportunidade de ler um livro bastante indicado por amigas. Realmente, esteve a altura dos elogios a ele dedicados. A Ausência que Seremos de Héctor Abad é um livro autobiográfico que trata da vida e da morte do pai do autor. O filho apresenta esse homem como alguém que possuía uma sensibilidade especial, um médico ativista de direitos humanos na Colômbia, que morreu assassinado em função das causas sociais que defendia. O livro é muito bonito e o autor consegue encontrar a boa medida para falar, depois da morte do seu pai, dos sentimentos fortes, e por vezes contraditórios, da relação deles.

O poema que inspirou a escolha do título do livro é de Borges e encontrava-se no bolso do pai no dia em que ele foi morto, após receber graves ameaças de morte. Poema que se chama epitáfio e diz assim:

Já somos a ausência que seremos.
O pó elementar que nos ignora,
que foi o rubro Adão, e que é agora
todos os homens, e que não veremos.

Já somos sobre a campa as duas datas
do início e o fim. O ataúde,
a obscena corrupção que nos desnude,
o pranto, e da morte suas bravatas.

Não sou o insensato que se aferra
ao som encantatório de seu nome.

Penso com esperança em certo homem
que não há de saber o que fui na terra.
Sob o cruel azul do firmamento
consolo encontro neste pensamento.

O fim é um tema que retorna constantemente aos nossos pensamentos. Vivemos repletos de lembranças daquilo que findou e nos deixou doces, e também amargos, sabores. Nossas experiências carregam a dimensão do fim em si mesmas. Quando iniciamos algo, já estamos cientes de que um dia isso acabará. Parafraseando Legião Urbana: pra sempre, sempre acaba!

Não considero que por isso o que é vivido perca valor. O fato de que algo não perdurará pode, pelo contrário, produzir uma saudade antecipada. Por sabermos da dimensão da finitude ali adiante, algumas coisas tornam-se ainda mais desejáveis. A festa que tem hora para terminar pode deixar um gosto de quero mais pelo simples fato de apresentar antecipadamente a existência de seu ponto final. Então, o limite intrínseco àquilo que é vivido produz o efeito de tornar algo mais valoroso.

O homem é considerado o único ser que sabe que um dia irá morrer. Essa consciência faz com que precisemos, por vezes, encontrar sentido para o nosso fim. O apego à vida, que pode parecer natural, faz com que a necessidade do desapego frente à morte seja assustadora. É claro que faz toda diferença uma repentina partida de um jovem em vez de um longo processo de despedida de alguém que viveu por muitos anos. Todavia, passamos o tempo todo de nossas existências nos apegando e desapegando de coisas, e esse movimento talvez seja o que realmente possamos chamar de vida. Não vivemos na continuidade, vivemos repletos de descontinuidades.

Claro que há aqueles que ficam mais presos ao fato de que o fim de algo prazeroso produz sofrimento; esses estão sempre chorando de forma antecipada. A ideia deles é algo como: por que me apaixonar, me apegar, se não sei quanto tempo isso pode durar? E se esse forte envolvimento tiver de terminar ? Colocar a finitude das coisas como motivo para impedir os enlaçamentos e acontecimentos é uma forma muito econômica de viver. Sim, muitas vezes vamos chorar nas partidas e despedidas, e isso vai doer muito, mas se conseguirmos sobreviver e considerar o valor dessas experiências, estaremos em melhores condições para os novos começos e recomeços que poderão vir.

Considerei que falar de forma positiva da ausência que já existe em tudo que começa é uma forma interessante de receber 2018. Ele começa agora, um marco humano que representa a ideia do novo, trazendo esperanças. Vamos viver esse novo ano tendo a noção de que o tempo impõe limites e, por isso, não devemos adiar a realização de nossos sonhos e desejos. 2018 vai acabar, mas talvez você lembre que desde o inicio se propôs a vivê-lo fazendo valer cada dia. E tomara que consiga!


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