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17 de outubro de 2017
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09:45

Uma nota sobre adolescentes e encarceramento

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Sul 21
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Uma nota sobre adolescentes e encarceramento
Uma nota sobre adolescentes e encarceramento
É no mínimo curioso o dispêndio de energia para legislar o legislado, e especialmente destinado à parcela ínfima da população adolescente infratora. | Foto: Agência Brasil

Marcia H. de M. Ribeiro, da APPOA

(…) em qualquer prisão real é impossível separar o que cada indivíduo traz de si para a prisão daquilo que a prisão desperta em cada pessoa. Philipe Zimbardo, 1973.

A alteração da maioridade penal, objeto da PEC 33/2012, retorna à pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado em alguns dias. Ela prevê que adolescente entre 16 e 18 anos, autor de crime hediondo e roubo reiterado possa ser julgado como adulto. Se sentenciado à pena de prisão a cumprirá em estabelecimento especial. Pelo texto da lei em vigor hoje, adolescente pode permanecer preso até os 21 anos em Centros sócio educativos. Em alguns Estados brasileiros existem alas ou Centros exclusivos para essa faixa etária. Há também alas separadas para os que cometeram reiterados crimes contra a vida, identificados como de ‘perfil agravado’. Aliás, segundo o texto do ECA, adolescente que comete esses e, repetidamente, delitos de outros tipos, como proposto pela PEC, pode perder a liberdade. É no mínimo curioso o dispêndio de energia para legislar o legislado, e especialmente destinado à parcela ínfima da população adolescente infratora. Segundo dados do Sistema Nacional Sócio Educativo publicado em 2017, dos 24 mil adolescentes presos no Brasil nas 476 Unidades no ano de 2014, cerca de 15% haviam cometido crimes contra a vida. 56% do total dos adolescentes presos tinham entre 16 e 17 anos.

Em um experimento coordenado pelo pesquisador e psicólogo social Philipe Zimbardo, na Universidade de Stanford, no verão do início dos anos setenta, foi construída uma prisão fictícia para funcionar por duas semanas. A equipe selecionou vinte voluntários da comunidade avaliados como jovens ‘emocionalmente estáveis, psicologicamente saudáveis, maduros e dentro da lei’. O grupo foi dividido aleatoriamente pelo jogo de cara ou coroa: metade carcereiro, metade prisioneiros. Retirados seus pertences e vestidos com uniforme, foram encaminhados para celas individuais sem banheiros construídas lado a lado. Todos foram informados sobre as regras de funcionamento da prisão, e para os carcereiros foi dada uma instrução suplementar: dever de manter a ordem. A tensão entre os dois grupos iniciou no primeiro dia de confinamento. Injúrias e agressões mútuas foram detonadas por situações banais do cotidiano. Os prisioneiros desobedientes foram repreendidos e submetidos a sanções arbitrárias, criadas no calor do conflito, como, por exemplo, lavar as latrinas imundas com as mãos nuas. Logo iniciaram os conchavos a partir de alianças criadas entre os participantes dos dois lados. Na manhã do segundo dia os prisioneiros fictícios se rebelaram. Os carcereiros fictícios usaram um pequeno armário preto sem janela, apelidado de o buraco, para castigar, confinando os indisciplinados. O experimento foi interrompido no sexto dia.

Somos afetados pelo estilo de funcionamento das instituições, sendo a primeira delas a família. A adolescência é tempo de impasses identificatórios. Opera-se um remanejamento do lugar de relevância das referências familiares, essas que deram suporte à imagem de si mesmo até o final da infância. Por esse remanejamento o adolescente, mas não só, está mais vulnerável a ser afetado por outras referências identificatórias. Elas responderiam a essas novas demandas de reconhecimento que, circunstancialmente, se confirmam pelo sentimento de pertencimento a outro coletivo, diferente da família. Assim, reconhecimento e sentimento de pertencimento se conjugam proporcionando uma dose de conforto neste tempo de desarrimo e de angústia sobre a imagem de si mesmo e sobre o lugar no mundo desde que findada a infância.

Um dos argumentos contra a redução da maioridade penal destaca o risco a que se submeteriam os adolescentes ao enviá-los aos cárceres, ‘escolas do crime’. Ali poderiam aprender técnicas sofisticadas do delinquir. A questão é mais complexa do que a aparente simples aquisição de uma habilidade. Nesse cálculo é preciso incluir a noção de que qualquer aprendizagem exitosa depende primordialmente da qualidade do vínculo afetivo construído entre o ‘aprendiz’ e o ‘mestre’, num contexto favorecedor. Inclua-se também o viés da identificação a uma determinada lógica de funcionamento institucional, e a possibilidade de se sentir pertencente a esse coletivo e por ele ser reconhecido; questões nada desprezíveis para os humanos e centrais na adolescência. Nesse sentido, tampouco os Centros de privação de liberdade para adolescentes estão isentos dos efeitos produzidos pelo e no confinamento.

Os pesquisadores de Stanford não eram ingênuos, sabiam que o contexto incide substancialmente sobre a singularidade e aciona modalidades de funcionamento coletivo, e para verificar os efeitos perniciosos do encarceramento não foram necessários três ou mais anos de privação de liberdade. Por ora, continua merecendo especial atenção refletir sobre o que sustentaria a decisão de tirar a liberdade de um adolescente, essa que só pode ser proferida caso a caso.

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Marcia H. de M. Ribeiro é psicanalista. Membro da APPOA e do Instituto APPOA.


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