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11 de outubro de 2016
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10:30

Memória e esquecimento

Por
Sul 21
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ditadura-militar-2Por Otávio Augusto Winck Nunes1

Tema sempre atual em qualquer lugar que estejamos, a memória traz com ela diversos desdobramentos. Na psicanálise, o tema da memória, foi uma das preocupações iniciais e principais de Freud. Não só na vertente do ‘esquecimento’ de algo, produzido pelo recalque, mas, também, pela forma como podemos construí-la.

Nessas duas vertentes não podemos desconsiderar, ainda, outras duas premissas: toda psicologia individual é, antes de tudo, social, e que cada um é causa de sua história e de sua narrativa. Pois bem, esses elementos nos ajudam a pensar como construímos a memória e como representamos a realidade em que vivemos. Isto é, para nos referirmos aos objetos que nos rodeiam, que constituem nossa realidade, precisamos de palavras para tentar traduzir o que sentimos aos outros, mesmo que nem sempre consigamos. Precisamos de palavras para nos relacionarmos com os outros – precisamos das palavras.

Posto isso, podemos dizer que a língua e a linguagem, desenvolvidas e utilizadas pelos humanos, são, também, sedes de sua memória, ou ainda, uma maneira de preservarmos e transmitirmos a cultura que vivemos às gerações futuras, nessa articulação entre o individual e o social.

Introduzo esse assunto, mesmo que acredite não ser nenhuma novidade para muitos, mas para levantar a questão da importância e relevância que tem a memória tanto individual quanto coletivamente.

Por razões profissionais estou envolvido num projeto, junto a vários colegas, e a instituição psicanalítica da qual sou membro, que se chama Clínica do Testemunho. Esse projeto tem, como objetivo, trabalhar com as pessoas que foram afetadas, direta ou indiretamente, pela violência de Estado no período da ditadura civil-militar brasileira. É uma das formas encontradas para nos confrontarmos com uma memória recente, mas, ainda, silenciada e esquecida em muitos casos.

O projeto visa, então, trabalhar com a memória daqueles que o Estado brasileiro tentou, durante 50 anos, esquecer.

Esse projeto, por sua importância e relevância, merece um texto específico que ficará para outra oportunidade, pois o que quero destacar aqui é o local, ou melhor, o lugar em que uma de suas atividades se desenvolve. A distinção entre local e lugar não é desnecessária. Mais, do que o espaço físico, um lugar tem uma função a ser exercida. Lembramos quando da montagem do projeto, que uma de suas atividades poderia ser desenvolvida no Memorial do Rio Grande do Sul, num belo prédio situado na praça da Alfândega. Escolha que nos pareceu óbvia por ser o lugar de preservação da cultura e da memória de um povo. É de extrema relevância para todos nós, sendo mais do que um espaço físico, é um lugar de preservação. É preciso destacar que a proposta foi muito bem acolhida, e a preocupação e o cuidado com que os funcionários do Memorial nos recebem é imensa.

O problema que gostaria de destacar e somar aos inúmeros já existentes na área da cultura e da educação, é o descaso do Estado com o seu lugar, com a sua função privilegiada na preservação da memória. A ameaça de fechamento do Memorial, o sucateamento do local e as incertezas sobre o seu futuro são injustificáveis.

O critério, nesses casos, quase sempre é posto na ponta do lápis, e refere-se que cultura e educação, não produzem dinheiro. Essa regra parece valer para os governantes quando eles estão em solo pátrio, mas quando estão em outras paragens não cansam de elogiar a importância que tem a cultura para os povos do hemisfério norte.

O acervo do Memorial que poderia muito bem ser aproveitado para estudos e pesquisas não tem valor para o Estado? Os documentos ali existentes, os mapas, gravuras, objetos reunidos ali servem para quê? Por que não dar valor a um lugar que foi restaurado, em que foi utilizado dinheiro público para sua reforma, para ser o lugar de preservação da memória? Não seria de dar valor a nossa história?

O Estado brasileiro sempre esteve em crise, não necessariamente financeira, a crise constante do Estado brasileiro é não ter o menor pudor em se retirar de funções que lhe dizem respeito. E, nesse aspecto, a dificuldade em reconhecer a sua função na memória individual só produz mazelas. A memória individual se faz, se constrói coletivamente. Freud achava que cada um seria causa de sua história, de sua narrativa. Como dissemos, seria possível nos posicionarmos de uma forma diferente perante a nossa vida e não sem os outros. Nesse aspecto, não poderíamos pensar que ao Estado cabe o mesmo?

Forçar o esquecimento não produz bons resultados, estamos cobertos de exemplos que comprovam isso. Dar o devido valor e respeito ao que nos constitui é fundamental para construirmos um futuro melhor, mesmo que queiramos esquecer o passado, ele não nos esquece.

.oOo.

1 Psicanalista, membro da APPOA.


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