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28 de abril de 2015
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12:07

Ver ou rever, eis a questão

Por
Sul 21
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Por Paulo Gleich

Em um recente debate sobre cinema, me espantei quando um dos interlocutores, o psicanalista e crítico de cinema Enéas de Souza, afirmou que havia visto mais de dez vezes Hiroshima mon amour. Mais de dez vezes! E isso de alguém que vê muitos filmes, afinal de contas é algo que faz parte de seu trabalho. Foi uma surpresa, mas também um alívio: gosto de rever (às vezes muitas vezes) filmes queridos, mesmo que em ocasiões o faça com uma certa sensação de que deveria estar assistindo a outro, inédito, da longa lista de lançamentos, recomendações e curiosidades que tenho.

Lembrei do filme que mais vezes assisti, Mulholland Drive, de David Lynch: se não cheguei nas dez vezes, estou quase lá. Nunca esqueço a primeira vez que o assisti. Acompanhou-me durante todo o filme, e mesmo depois, uma sensação de estranhamento tão grande e peculiar, que não sabia a que atribuir. Algumas cenas eram montadas como tremendos clichês, mas alguns pequenos detalhes lhes retiravam esse aspecto e me lançavam à beira de um precipício, que me atraía e me assustava. Lynch havia conseguido capturar, com maestria ímpar, a sensação do universo onírico através de suas lentes.

Era impossível voltar a sentir o mesmo, assim como dizem que é impossível voltar a sentir o mesmo barato que algumas drogas proporcionam na primeira vez. Já perdi a esperança de sentir novamente a desacomodação que me provocou o primeiro contato com o filme, mas cada vez que o revejo é uma experiência única, com novos detalhes e leituras. Meu maior prazer, porém, é poder apresentá-lo a outros, na esperança de que tenha efeito algo parecido com o que senti na primeira vez, para que, vampirescamente, eu possa talvez sentir por tabela um pouco daquilo.

Acho que compartilho isso com outros: há um prazer em apresentar um filme querido a alguém querido, prazer maior ainda quando se está presente no momento dessa experiência. Mas há também algo de assustador em apresentar um filme preferido a alguém especial para nós: é como mostrar uma intimidade daquelas que revelamos apenas aos mais próximos. Testemunhar os efeitos que isso provoca no outro não é qualquer coisa: pode fortalecer o laço, mas também abalar. Como superar o efeito narcísico de receber o desagrado, ou pior, a indiferença para com algo que nos é tão caro? Haja amor!

A produção cinematográfica, incluídas aí também séries e outros produtos audiovisuais, é virtualmente infinita hoje em dia: graças à internet, temos em casa um acervo gigantesco de produções de todos os gêneros e cantos do mundo. Apenas as séries que “todo mundo vê” já demandariam um tempo maior do que tenho, isso sem contar aquele filme coreano super-premiado, aquela minissérie dinamarquesa coroada pela crítica, aquele filme em cartaz que estão todos comentando, aquele curta em que um amigo atuou. A oferta é tamanha que não à toa já virou brincadeira comum – e, muitas vezes, é fato – que se gasta mais tempo escolhendo o filme no Netflix do que propriamente assistindo. É uma sensação parecida com a de ir a uma grande loja de departamentos: a quantidade de produtos “pedindo” para serem comprados é tão grande que acabamos ficando inibidos, paralisados.

Rever um filme, reler um livro, revisitar um lugar – enfim, repetir – vão no contrafluxo do que nos exigem nossos tempos cheios de novidades por toda parte. Somos feitos de repetição: é no reencontro com o conhecido que nos reconhecemos. E é paradoxalmente nesse reencontro que também, muitas vezes, nos estranhamos: pode aí emergir o novo, talvez menos espetacular, mas não por isso menos importante, que está nos detalhes. Assim como um rio nunca é o mesmo em dois momentos diferentes, também um filme ou livro nunca são os mesmos: a cada reencontro, os vemos e lemos com outro olhar. Talvez por isso sejam eles, os conhecidos, as melhores formas de registrar o que de fato há de novo em nós, que somos sempre iguais, mas também sempre diferentes de nós mesmos.

Paulo Gleich é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); jornalista.


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