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6 de março de 2018
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15:05

Uma pós graduação em cultura brasileira contemporânea

Por
Sul 21
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Uma pós graduação em cultura brasileira contemporânea
Uma pós graduação em cultura brasileira contemporânea
Maracatu rural da zona da mata pernambucana. (Foto: Clarissa Ferreira)

Clarissa Ferreira (*)

Comecei a entender a arte de alguns artistas e o sentido de algumas manifestações culturais estando próxima do lugar de origem e podendo ver de perto o povo de onde tais expressões brotaram. Após uma viagem de duas semanas pelo nordeste do Brasil, e a sensação de ter cursado uma pós graduação intensiva e presencial em culturas do Brasil contemporâneo, aclaram-me algumas questões antes perpassadas somente pela teoria.

Ter a oportunidade de olhar até perder o medo do desconhecido, parar de só observar e registrar para além da memória me faz tomar nota como quem escreve um tratado, um diário ou uma intervenção placitar no papel. Nesse caminho me deparo com os textos do músico e pesquisador Guerra Peixe na metade do século passado escrevendo e transcrevendo o que via daquele Recife contemporâneo, como quem decifra fatos. Me pego hoje neste mesmo lugar, repensando e compreendendo o diferente e até então desconhecido e indecifrável.

Repenso sobre sagrado e profano ao ver muitos grupos de maracatu rural de povos interioranos e humildes da zona da mata pernambucana. Milhares de franjas brilhantes luxuosas confundem meu olhar em meio ao respeito de todos aos ares ritualísticos e religiosos do carnaval. Seriam sacrilégios em cores brilhantes em protocolar cerimônia ancestral? Com ares de heave metal e extravaso corpóreo no maracatu rural corpo é igreja que balança. Ponte para outro lugar da consciência. Rufam as caixas, sacodem os chocalhos, repicam as alfaias. Sol a pino. Em outro momento eu fervo, tu ferve, nós todos frevo. Estética do calor intenso. Movimento em coletividade, massa humana movediça.

Sinto no maracatu rural a força da tradição e a respeitabilidade de seus integrantes muito próxima aos grupos de tradições gaúchas daqui do Rio Grande do Sul – porém sem a competição, o que muda radicalmente o clima e a função do fazer cultural (a competição também é cultura, claro) e com uma diferença gritante quanto ao respeito sobre gênero. Ver a maioria destes grupos tendo como personagens femininos transexuais me faz pensar quando se aceitará trans nos CTG’s.

Na Bahia recebi aulas de religião. Caíram muitas fichas sobre fé. O olhar do Dom Bosco que vi no outdoor na beira da BR que leva do aeroporto de Salvador até o Rio Vermelho me causa empatia. Outros painéis mostram os artistas mercado lógicos locais. O destaque do axé e das muitas vogais não me incomoda. Na mesma BR vejo uma Nossa Senhora Auxiliadora. Serão sinais de uma colonização apostólica romana? Tons salesianos me recebem, como querendo mostrar familiaridade. Ainda nesse momento calam-se o som dos tambores que ainda não vi. Em frente avisto um templo gigante de uma enorme escadaria. Universal ou mundial do poder de deus, não do Bomfim. Pero lotada tanto quanto. Lavam-se os degraus ou os dinheiros?

Onde olho vejo sereias com espelhos e relatos de músicas feitas para Janaína. Espelhos que refletem o sol e o sul, reverberações deste nordeste inventado e tanto quanto o sul estereotipado, cuja multiplicidade não se aborda em livros ou em expressões homogeneizantes que envolvem políticas e interesses para que os estados sejam vistos como tal – tudo construído. Santos, santos, santos, somados a quadros de mulheres nuas. Terreiro de Jesus. Bahia de todos os santos – todos! Território ecumênico de coabitantes sincretismos. Que aula de tolerância!

Algumas outras lições na Bahia são sobre apropriação cultural. Para as baianas profissionais das trancinhas o conceito pode ser outro. Querem me ver trançada, me oferecem simpáticas. Repenso se esta discussão não se enquadra somente em um discurso intelectual classe média, apesar de respeitar os símbolos e não aderir a estes adereços, assim como os turbantes. A cada esquina uma oportunidade de consumo, e de trabalho. E a comercialização de elementos caros a construção de identidades por necessidade de sobrevivência. Me toca o relato da presidente da associação das fazedoras de tapioca no Recife e o “viver da goma”. Penso no de que viver. Qual matéria prima sustenta?

Houveram classes fortes de literatura e música. Compreendi que a obra de Jorge Amado muitas vezes se resolve no plano dos sonhos dos personagens. Confirma o pensar sobre a função dos romances em transmutar planos astrais e metafísicos. Realismo mágico ou fantástico. Acho que também saquei a escolha dos acordes e o uso das dissonâncias do Caymmi a partir de agora. Atuam como fractais sonoros de mar, em um caleidoscópio de choques tonais que traduz estar em meio ao desconhecido e gigante oceano ou como um retrato em som capta as vilas e as vidas dos pescadores, as dores de amores que se levam pelo mar, ou por Iemanjá. Recordo ter visto alguns desses vilarejos em cima de pedras e totalmente interligados ao ecossistema marítimo e pensar sobre uma outra possível cosmovisão de mundo.

O conhecimento intuitivo das rabecas me leva a pensar em outras formas de aprendizagem. Algo que fica entre o limiar do ouvir e do sentir. Concluo que pensamos demais. Bloqueamos tudo ao redor que nosso pequeno cérebro não dá conta. Deixamos de pensar com o restante do corpo. Como somos racionais, dicotômicos e simplistas! A filosofia a partir do iluminismo acho que explica. Preciso de um reforço nessa aula. “A fronteira entre realidade e magia é uma outra e não obedece os padrões da racionalidade europeia” diz o escritor Mia Couto. Penso que a racionalização também nos tira a fé.

Agora volto aqui. Olho as fotos salvas no desktop de quando em vez. Tomo a lição toda. Saudade das cores. Pesquiso tudo que vi e não sabia. Penso no tempo e no curso da história que admite ressignificações, como a expulsão dos holandeses pelos índios, negros e portugueses no século XIX que hoje se ressignifica tendo como porta estandarte de um de seus principais maracatu nação uma holandesa. Histórias reais que parecem estórias e que se apresentam em cartaz para quem tiver oportunidade de ver e medo de perder-se. Perder um pouco das certezas que se tem e dos sensos comuns. Deixar algo de si no caminho, mas trazer muito.

(*) Clarissa Ferreira é violinista, doutoranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autora do blog Gauchismo Líquido.


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