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27 de março de 2018
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10:19

Reflexões sobre trabalhar com música hoje

Por
Sul 21
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Reflexões sobre trabalhar com música hoje
Reflexões sobre trabalhar com música hoje
(Colagem: Clarissa Ferreira)
“A arte é a nossa poderosa ferramenta para a reflexão e denúncia”. (Colagem: Clarissa Ferreira)

 Clarissa Ferreira (*)

A música é uma forma de dizer o que pensamos sem nos acharem loucos ou lunáticos. Ouvi essa mensagem, ensinamento ou simples constatação, que represento aqui de forma não literal, do músico Pirisca Grecco ao terminar a entrevista que tive a oportunidade de realizar com ele na última terça feira à tarde. O gravador já estava desligado neste momento, o que faz ter perdido sua composição com as palavras, o seu sotaque ao dizê-las para aqui poder descrever, mas a mensagem chegou e ressoou muito por esses lados.

Tenho pensado na função do artista, mais especificadamente do músico hoje em nossa sociedade. Além de ser uma reflexão presente e que tem se tornado mais consciente agora, devido ao fato de atuar profissionalmente desde a adolescência, recebendo os primeiros cachês ainda menor de idade, o tempo, a crise e o conhecimento nos colocam mais perto do significado do que realmente fazemos, e do que ensejamos com tal função. Consegui convergir esses meus questionamentos para o meu tema de pesquisa acadêmica, e tenho desenvolvido minha tese de doutorado sobre a construção de identidades profissionais e musicais em músicos que gerenciam sua carreira de forma independente no Rio Grande do Sul, e que possuem ligação com o regionalismo sul rio grandense, tema que já venho pesquisando há alguns anos.

Uma rede de significados postos se deu ao entrevistar Pirisca na passagem de som do show do Aluisio Rockembach no Theatro São Pedro, estreia de seu novo disco intitulado Dona Maria, e no mesmo dia o grupo Instrumental Picumã receber o Prêmio Açorianos, e também há alguns dias me sentir muito realizada ao tocar com Gabriel Romano e Grupo no Festival de Bandas Instrumentais. Em comum nessa teia artistas com contatos musicais ligados a ambientes familiares e a fazeres sonoros a partir do interior do Rio Grande do Sul. Semelhante também a profissionalização destes desde o segmento da música gaúcha regional, nativista e/ou tradicionalista, que passou por fases de ascensão e valorização, criando um mercado antes inexistente no estado, e que até então apresentava grande estabilidade. Tal solidez que hoje se encontra bastante fragmentada por inúmeras razões, como as mudanças no mercado fonográfico que diminuem o poder hegemônico das gravadoras e dos dominantes meios de comunicação, resultando em uma maior liberdade estética e artística dos artistas ao se autogerenciarem.

Repensar e renovar são palavras presentes para as práticas contemporâneas destes músicos, e para quem deseja fazer do som a matéria prima de seu sustento. A luz que clareia uma possível solução vem do resgate a relações mais orgânicas com ouvintes e público. O ideal de artista que o mercado tanto distanciou das “pessoas comuns” com fins de criar fetiches em forma de ídolos, hoje se desnuda. Órfãos de um mentor ou produtor que mostre o caminho, o músico hoje se repensa.

Pirisca comentou estar lendo sobre protagonismo responsável. Tal conceito liga a uma visão humanista de salvaguardar o valor humano, valorizando a autonomia pessoal. Neste contexto criou a “Hora da Música” e o “workxóte” como formas de atuar como mediador e instrutor de seu conhecimento de vinte e cinco anos de carreira. Vale lembrar que o artista possui um clube composto por sócios apoiadores chamado “Clube da Esquila”, que apoia suas produções e de seu grupo “Comparsa Elétrica”.

Interessante pensar que este conceito humanista foi iniciado no período do Renascimento, que veio após uma fase de trevas no pensamento e de crises das crenças, que de alguma forma podemos relacionar ao período que estamos vivendo. Também me lembra o que o intelectual marxista italiano Antonio Gramsci já abordou sobre o intelectual público e a relação com a formação de uma consciência crítica e com a organização das ações políticas – pensando aqui política como um todo, relacionada a valores, a determinados modos de vida e comportamento. Tal ideia conversa com a função do intelectual ou artista e a sua relação com o mundo real. O crítico dinamarquês Sheikh afirma que há duas ações que são pertencentes ao artista quando visto como intelectual público: o engajamento e a produção. Elas se tornam possíveis por meio de ações de resistência e transformação social, diferentes das ações pautadas pelo capitalismo e da formação da esfera pública burguesa.

Sobre essas novas condições ou possibilidades de trabalho na música, reflito sobre a dificuldade do autogerenciamento, mas também o lado positivo dessa nossa condição. O que creio ser mais valoroso desse novo modo é a não terceirização de algumas etapas, que quando produzidas pelo próprio indivíduo podem falar muito do artista, e das formas que se expressa com as linguagens, sejam elas as artes gráficas de seus cartazes, ou um contato pessoal com o público, sem um agente intervindo nessas relações que são organicamente do artista com o mundo.  Há uma nova condição discursiva sendo colocada a partir dessa autonomia de produção. Vale atentar que o excesso de autogestão pode comprometer a criação, o que nos leva a questionar e colocar na balança: a qualidade do produto artístico X a forma de divulgação como fórmula do sucesso.

No show do Aluisio Rockembach que ocorreu na última semana foi apresentada uma composição sua com letra do poeta Martin César que fala sobre a condição de um músico que toca na rua para poder se sustentar.  É descrita nos versos a história de um profissional que tenta construir carreira longe da sua cidade e finda por tocar por moedas e com pouca atenção nas ruas. Aparte de todo o encantamento desse trabalho que é fazer música na rua, mas esquecendo um pouco a romantização, que também é real, em tal ato, penso: o que estamos fazendo para que as artes sejam realmente valorizadas pelas pessoas? E como resistir se até as expressões artísticas seguem estratégias de mercado como única forma de resistência? Andamos atrás dessas respostas. A arte é a nossa poderosa ferramenta para a reflexão e denúncia, como peças fundamentais dentro da estrutura social. Façamos!

(*) O álbum “Dona Maria” do compositor Aluisio Rockembach se encontra no Spotify, e a música referida de chama “Un acordeón y un sombrero”

(**) Pirisca Grecco possui seus trabalhos nos serviços streaming e está nas redes sociais, sempre disponível pelo “atendimento ao comparsa”

(***) Dia 29 de março estarei com o pessoal na Pedra Redonda no Quintal Bar e Cultura às 21 hrs no evento “Quintal da Pedra Redonda”

(****) Dia 8 de abril Clarissa Ferreira Quarteto com Lucas Ramos, Neuro Junior e Tamiris Duarte + participações especiais no Café Fon Fon às 20 hrs


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