Colunas>Clarissa Ferreira
|
25 de janeiro de 2018
|
16:35

A autonomia das mulheres na música em Porto Alegre

Por
Sul 21
[email protected]
A autonomia das mulheres na música em Porto Alegre
A autonomia das mulheres na música em Porto Alegre
“A arte de mulheres tem se tornado cada vez mais forte por trazer um novo olhar sobre o que somos”. (Foto: Simone Carvalho)

Clarissa Ferreira (*)

Alguns eventos tem marcado positivamente esse incipiente ano na capital. Só para ilustrar, em janeiro já ocorreu o carnaval com As Batucas – Orquestra Feminina de Bateria e Percussão, estreia do Projeto Concha, no Agulha, que se direciona a apresentar a arte de mulheres musicistas contemporâneas, e o Girls Rock Camp, que é uma imersão para jovens dos 7 aos 17 anos terem suas primeiras iniciações com as expressões sonoras. Tive a oportunidade de participar dos dois primeiros eventos descritos e venho falar sobre como tenho visto o protagonismo de mulheres na cena musical porto alegrense.

Já costumava abordar os temas de gênero nos textos do Gauchismo Líquido (http://gauchismoliquido.blogspot.com.br/), pois experenciava ambientes musicais quase que exclusivamente masculinos. Levantei essa pauta ao falar dos festivais nativistas e da pouca presença de mulheres no movimento, principalmente como compositoras, ficando os espaços sociais estabelecidos para algumas intérpretes e pouquíssimas instrumentistas. Depois de adentrar ao estudo de música, gênero e identidade, percebi que tal fato certamente se daria pois a identidade gauchesca foi constituída alicerçada na masculinidade, que refere-se a uma fundamentação histórica secular do mito do centauro, que teria influenciado enormemente a cultura ocidental através de “características masculinas, pastoris e que possuem ligação com o cavalo” (Hobsbawn, 2013). Isso ajuda a compreender a total ausência de mulheres nas seleções dos festivais nativistas até hoje. Vale lembrar que no Rio Grande do Sul possui um festival onde a entrada de mulheres é proibida, e que o mesmo, por mais que tenha começado como um acampamento entre amigos (argumento muito difundido) foi cogitado por alguns políticos para tornar-se patrimônio cultural do estado.

Mas hoje estamos aqui para falar de coisa boa, e felizmente temos motivos para isso. Nesse emaranhado de significados sendo redescobertos por mim nos ambientes musicais que circulava, abriu-se margem para que se desenhassem algumas escolhas, entre lutar por um espaço de representação entre padrões estéticos que não compartilhava ou criar e dar ouvidos aos meus próprios padrões de gosto e de significado. Cheguei a conclusão que para adentrar a certos espaços artísticos e musicais masculinamente dominados, também deve-se adequar-se aos entendimentos (pre)dominantes neles. Neste contexto penso: para que construir ou reforçar uma imagem de mundo que não é a nossa?

Vejo que a arte de mulheres tem se tornado cada vez mais forte por trazer um novo olhar sobre o que somos, diferente do antropocentrismo exclusivamente masculino que nos construiu e que criou essa imagem e conduta do que devemos ser. Edificando nosso olhar, uma possível epistemologia feminista, estamos conseguindo nos libertar dessas amarras, seja no campo social como no campo artístico.

Vemos que há algo revolucionário acontecendo quando na cidade de Porto Alegre projeta-se um grupo de percussão feminina, priorizando a prática do instrumento e do ritmo – o que culturalmente (na cultura machista, no caso) acreditou-se serem características masculinas. Ressalto aqui a atuação fascinante de mulheres como do grupo Três Marias, que trazem nas vozes e nos toques dos instrumentos o canto ancestral do feminino sagrado que fala diretamente com nosso inconsciente – conversam com nossas memórias coletivas, provocam acolhimento. Como elas tantas e inúmeras. A cada dia uma mulher muito incrível para conhecer muito proximamente.

A participação de mulheres na cena musical e as obras produzidas por elas não é tão “simples”, por mais que possa parecer a outros padrões estéticos (simples, aliás, foi o adjetivo que um apresentador de programa da televisão local falou para definir o que ouvira após a apresentação de mulheres recentemente). A atuação de compositoras e musicistas gera grandes transformações, como: a visibilidade de quem antes ficava restrita a determinados núcleos sociais, a construção de narrativas antes silenciadas, e a valorização de trajetórias – o que as empodera (goste ou não dessa palavra). Empodera no nível da subjetividade, da visão de si sobre si, da aceitação e da autoestima. Mas também empodera no sentido monetário (já que esse é o deus contemporâneo, e quando se fala em grana se bota fé). O mercado musical agora é compartilhado, sim. Do pagode ao rock, passando pelo experimental, tem muita mina tocando, o que gera no mínimo mais oportunidade de empregos para mulheres e cria maiores condições de igualdade.

Muito maior que o “canto das sereias”, ou adjetivações desnecessárias que são mais comumente faladas a mulheres sobre suas obras, estamos falando aqui de mulheres reais, carne e osso. Parece que assusta. Afinal como disse Lucy Green (1997): “Quando escutamos uma mulher cantar ou tocar, quando escutamos a uma música que ela compôs ou improvisou, não apenas escutamos os significados pertencentes à música, também estamos conscientes de sua posição discursiva vinculada a gênero e à sexualidade. Quando a música retrata feminilidade através de uma intérprete ou compositora, nós estamos sujeitos a julgar o manuseio de seus significados por esta intérprete ou compositora em termos de nossa ideia sobre sua feminilidade.”

Assim sendo, estimular a percepção e escuta sob as questões de gênero em música é fundamental neste momento de uma real representatividade. Façamos! E para quem ainda não se acostumou a ver mulheres protagonizando na música, a dica é: aprenda a lidar com isso.

Referências citadas:

GREEN, Lucy. Music, gender, education. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

HOBSBAWN, Eric. Tempos fraturados: Cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

* Esse sábado estarei com As Batucas – Orquestra Feminina de Bateria e Percussão fazendo carnaval no Parque Marinha às 15 hrs, e dia 31/01 fecho esse belo mês fazendo participação no show da cantora Adriana Deffenti no Meme – Santo de Casa às 22 hrs.

Clarissa Ferreira é violinista, doutoranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autora do blog Gauchismo Líquido.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora