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30 de julho de 2020
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17:33

Notas sobre a reinvenção da esquerda

Por
Sul 21
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Ato contra o fascismo, o racismo e em defesa da democracia no Centro de Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Céli Pinto (*)

Há uma diferença abissal entre a oposição ao governo Bolsonaro e a reinvenção da esquerda no Brasil. A primeira admite acordos menores e parceiros com pouca identidade ideológica. Isso pode ocorrer no poder legislativo, mormente na Câmara de Deputados, como é o caso da eleição do próximo presidente da Casa. É importante um novo presidente com um nível razoável de independência do clã Bolsonaro, o que deve merecer a atenção de todos.

Entretanto, tal fato não pode ser confundido com a reinvenção da esquerda no Brasil. Quando falo em reinvenção, não tenho em mente que se deva partir de um marco zero, mas que é necessário tomar em consideração um conjunto de variáveis complexas e distintas daquelas que compunham o campo da esquerda nos anos 80 e durante os governos do Partido dos Trabalhadores.

Em primeiro lugar, precisamos nos livrar de vícios militantes que muitas vezes não permitem um olhar que mostre a realidade crua e amarga apresentada pelo Brasil. Daí a ideia de reinvenção. A esquerda, para se reinventar, precisa considerar, no meu ponto de vista, três aspectos: uma autocrítica; o lugar do PT; as novas formas de interpelar a população.

Minha ideia de autocrítica não tem absolutamente nada a ver com o senso comum mediático antipetista. Penso em autocrítica em outro sentindo: os governos de esquerda e centro-esquerda no Brasil foram tímidos no enfrentamento dos problemas estruturais do país. Não tiveram força, ou vontade política, de radicalizar a democracia, promovendo uma forte transformação na estrutura social, provocadora desta miríade de desigualdades sociais. Também não foi radical o suficiente para expandir a participação política, despreocupando-se com a reprodução de uma minoria masculina, branca e preconceituosa nas posições de poder no Estado e nas listas partidárias eleitorais. Infelizmente, quando da vitória da extrema-direita, as estruturas do poder econômico, patriarcal e escravista, estavam bastante conservadas, e puderam ser usadas das formas mais perversas possíveis.

Em segundo lugar, a esquerda, para se reinventar, depende muito do papel que o Partido dos Trabalhadores encontrará para si no novo cenário. Não há reinvenção sem considerar que o PT é o maior partido de esquerda no país, que esteve na presidência da república por 4 vezes e elegeu a maior bancada na Câmara de Deputados nas últimas eleições. Isto dá ao partido uma grande responsabilidade, mas não o monopólio de candidaturas, de programas e de lideranças incontestes. Creio que não há construção de esquerda sem o PT, mas também não haverá se o PT não souber entender o espaço que ocupou e que agora ocupa no atual cenário, inclusive em relação aos seus antigos eleitores. O PT tem de ser democrático, profundamente democrático, na forma de se relacionar com os outros partidos e movimentos da esquerda brasileira. Isso não implica fazer concessões a coronelismos esquerdistas de ocasião. Um projeto de esquerda não se reorganiza dando espaço para “direitas convertidas’.

Em terceiro lugar, a esquerda precisa ter um projeto que vá muito além do antibolsanarismo. Além de ser antifascista, tem de recolocar um projeto de democracia e, neste projeto, incorporar um conjunto robusto de novas questões. Não tenho a pretensão de fazer uma listagem, mas lanço algumas para reflexão: primeiro, a esquerda precisa de uma nova postura relativamente às questões do trabalho. Não é suficiente a crítica constante à precarização, quando parte significativa da população brasileira está buscando se salvar da miséria em um trabalho precário. Não adianta achar que falar com o trabalhador é ir para as portas das fábricas e aos sindicatos, já que fábricas e os antigos trabalhadores não mais existem.

Outra questão central é a relação com as igrejas. Elas vêm tomando um espaço muito importante na vida das pessoas, principalmente na dos mais excluídos socialmente, e dão sentido à forma como muitas pessoas entendem o mundo. A denúncia constante contra algumas igrejas, cujos líderes possuem interesses comerciais nem sempre lícitos, não é suficiente. É necessário e urgente aproximar-se das igrejas e interpelar o discurso religioso, não para se contrapor, ridicularizá-lo ou desqualificá-lo, mas para ressignificá-lo, articulando-o às questões de justiça social, de igualdade racial, igualdade de gênero, de liberdade ao tomar decisões. As igrejas pentecostais vieram para ficar, a esquerda não pode se dar o luxo de ignorá-las.

Finalmente, mas não menos importante, urge trazer para dentro da política, para a construção de um projeto de esquerda, uma grande parte da população que está muito distante, ainda que não seja conservadora, reacionária ou bolsonarista, os jovens: brancos ou negros, homens e mulheres cis ou trans, da periferia ou de alguns setores de classes médias, que militam em causas muito importantes e inovadoras, mas estão longe de projetos políticos partidários. Não há projeto de esquerda inovador liderado por uma gerontocracia. Agora, nas eleições municipais, há muitos candidatos e principalmente candidatas à vereança que são jovens, muitas negras, alguns e algumas da periferia, com propostas originais, inovadoras e democráticas. Está mais do que na hora de prestar atenção ao que está acontecendo em 2020, para que 2022 não venha a ser uma disputa entre direitas.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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