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25 de maio de 2020
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16:37

“Nós não estamos aqui para brincadeira”

Por
Sul 21
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“Nós não estamos aqui para brincadeira”
“Nós não estamos aqui para brincadeira”
Reunião ministerial de 22 de abril. Foto: Marcos Corrêa/PR

Céli Pinto (*)

Muito já se falou sobre o sodalício, como chama o ministro Celso de Mello, de 22 de abril, que veio a público na última sexta-feira. Decantando todos os palavrões, ofensas e impropérios contumeliosos, nas palavras do mesmo ministro, o que sobra não se deve jogar fora. Há um claro projeto de governo em meio à algazarra, que rapidamente poderia ser resumido como o projeto de um grupo paralegal representado por Bolsonaro, que troca a garantia de sua existência por garantias aos interesses do capital. Simples assim. Mas vamos por partes.

Na fala do Presidente da República, há uma frase que já tinha vindo a público, bem antes da integra do vídeo, que me causava muita estranheza e, colocada no contexto, ficou mais clara. “Nós não estamos aqui para brincadeira!”. A pergunta é: quem é este “nós” Se há um “nós”, quem são “eles”? A quem Bolsonaro está se dirigindo? Ao público? À imprensa? Às oposições? Não, nenhum destes sujeitos estava presente ao sodalício, nem deveria ter acesso a ele. Portanto, Bolsonaro falava, destemperado, para os ministros, para o conjunto dos Ministros, com exceção de Paulo Guedes, com quem afirmou tinha zero problema.

Ministros e presidentes de bancos públicos, presentes ao sodalício, eram os receptores daquele discurso. O “nós” parece ser o presidente mais um grupo que estava fora da sala, o “nós” estava ameaçado e deveria ser protegido. Para proteger o “nós”, o presidente precisava de duas coisas: obter informações privilegiadas e armar seus ainda 30% de apoiadores fanatizados. Não se trata de armar o povo, como justificou, contra governadores e prefeitos, que teimam em seguir as normas da OMS, porque a grande maioria dos cidadãos e cidadãs brasileiras, mesmo armada, não vão sair para as ruas assassinando ao léu. Trata-se de montar uma milícia, um grupo paramilitar, que faria o serviço que as Forças Armadas não acham digno fazer. Em momento de crise moral, ética, política e econômica, sempre haverá um grupo de desvalidos pronto para desempenhar este papel.  Marx já descreveu, com propriedade, o lúmpen. O projeto Bolsonaro não é original, há exemplos históricos à baciada, como diria o Ministro do Meio Ambiente.

Mas o projeto de construir um governo com garantias paralegais precisa ir além do aparato paramilitar e de interesses escusos de grupos semiclandestinos que vivem, muitas vezes, à revelia da lei. E, neste momento, o Ministro “zero problema” é fundamental. Tirando fora os palavrões e a patética contagem de livros que leu na vida, Paulo Guedes foi muito claro em dois pontos: temos de usar o dinheiro público para ajudar os grandes, nada de dinheiro para os pequenos; temos de privatizar o Banco do Brasil. Nesta reunião, que – nunca esqueçamos – não deveria vir a público, o Ministro da Economia deixou claro que o governo não tem nenhum projeto e, mais do que isso, nenhum interesse, em reconstruir a economia do país depois da pandemia com um olhar, mesmo que muito tímido, para as camadas mais pobres da população, que estarão, às dezenas de milhões, desempregadas. Elas serão bucha de canhão da gang armada pelo Chefe.   Muito resumidamente, eis o projeto que está em curso no Brasil. Iludimo-nos se pensarmos que eles não sabem o que fazem. Se isso será levado a efeito dentro de um aparato democrático rasteiro, como o que temos atualmente, ou se medidas golpistas mais drásticas serão necessárias, só o tempo dirá.

Há atores menos estrelados, mas fundamentais para o sucesso deste projeto e que também se manifestaram na reunião. A farsa de ataque histérico do Ministro da Educação, ao chamar os ministros do STF de vagabundos e querendo mandá-los para a cadeia, foi uma tentativa de ganhar o apoio do Chefe em um momento em que sua queda é iminente. Ricardo Salles, o Ministro do Meio Ambiente, mostrou grande preocupação em acabar com todas as normas e regulações que protegem o meio ambiente no Brasil. Sua fala foi a de um meliante, com tom de voz e palavras de quem está combinando um crime comum com seu bando. Mesmo que as medidas que propõe não sejam ilegais, são imorais, acentuadas pela forma como foram propostas. A única preocupação de Salles é garantir, ao agronegócio e aos grileiros, a tranquilidade do desmatamento e a grilagem em terras públicas ou pertencentes aos povos indígenas.

Não é preciso cansar o leitor com mais detalhes sobre aquele circo dos horrores, mas vale a pena ainda lembrar alguns. Houve coadjuvantes com papeis secundários, mas não desnecessários. O Ministro do Turismo, sempre ameaçado de perder o cargo, acenou para a liberação dos cassinos, o que parece ser um sonho de Bolsonaro, apesar de ser coisa do demônio para Damares Alves. Esta, também encenando um ataque histérico, bradava que prenderia governadores e prefeitos, numa – desculpem o baixo calão da expressão – demonstração pura e simples de puxa-saquismo. Até os minerais sabem que ela não tem poder para nada, pelo menos no nível do real, já que, em sua fantasia paranoide, costuma provocar encontros nada comuns com divindades em goiabeiras.

A nota cômica, se não fosse trágica, se deve à participação do então Ministro da Saúde, Nelson Teich, que tentou falar sobre algo completamente sem importância para os presentes: as medidas de combate à Covid-19, ouvidas de forma displicente e sem comentários. O ministro, em seus 29 dias de governo, sempre me lembrou um velho meme de John Travolta, tirado do maravilhoso filme Pulp Fiction, quando seu personagem é mandado buscar a mulher do chefe. Vejam o meme, qualquer comentário seria excessivo.

Houve, portanto, tentativas de ministros de serem incluídos no “nós” do presidente. Algumas prosaicas, outras patéticas. Os ministros militares se mantiveram em silêncio. Para garantir o espaço que conquistaram, calarem-se foi a melhor estratégia, pelo menos enquanto a democracia, mesmo fragilizada, não for empecilho para o projeto de poder representado por Bolsonaro.

A pergunta é: quais as possibilidades deste projeto fracassar e o presidente ser tirado do cargo por um impeachment, que envolve perda de apoio do Congresso Nacional?. E gostaria de finalizar este pequeno ensaio apontando algumas possibilidades.

1. Pressão da sociedade, com entrada na Câmara de Deputados de pedidos para abertura de processo de impeachment.   Isto já existe. Na mesa de Rodrigo Maia, já há um número expressivo de pedidos. Precisamos fazer crescer este número. Como disse uma jornalista outro dia, o centrão não tem vocação para orquestra do Titanic. Ele saltará do barco, como já o fez outras vezes.

2. Baixa da popularidade de Bolsonaro em pesquisas de opinião. Para que os pedidos de processos de impeachment possam pressionar o Congresso Nacional, o presidente precisa ter popularidade abaixo de 15%. Está começando a perder, aos poucos, seus até então infalíveis 39% de apoiadores.

3. Retirada do apoio ao governo por parte do empresariado, representado principalmente pela FIESP. Uma saída de Paulo Guedes do governo seria quase fatal para Bolsonaro.

4. Retirada do apoio do setor militar do Planalto a Bolsonaro, a partir de pressão da parte das forças Armadas que está fora do governo. Isto só acontecerá se o governo chegar a um nível de desorganização e aproximação com grupos pouco legais e, no cálculo de perdas e ganhos, as perdas forem maiores. Mas, neste caso, as consequências são tão inesperadas quanto perigosas.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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