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7 de abril de 2020
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22:03

A farsa do grupo ideológico

Por
Sul 21
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A farsa do grupo ideológico
A farsa do grupo ideológico
“Paulo Guedes é representante do ultraneoliberalismo, do sistema financeiro internacional e do desprezo por qualquer tipo de política social”. (Foto: Agência Brasil)

Céli Pinto (*)

A grande mídia, em todas as suas manifestações, insiste em fazer uma distinção, quando fala no governo Bolsonaro, entre o grupo ideológico e o grupo técnico. Isto é uma farsa. Atualmente a distinção é feita para proteger alguns setores do governo mas, em tempos passados, a pecha de ideológico foi usada para atacar a esquerda e, principalmente, o PT.

Não vou perder tempo escrevendo sobre o primário uso do conceito de ideologia feito pela mídia, às vezes dá vergonha alheia quando jornalistas, que se veem como elite da profissão no país, empostam a voz para falar do grupo ideológico. Falam por puro desconhecimento, falam por interesse, ou porque sabem que têm repercussão entre parcelas de classe média muito ignorantes, apesar ostentarem títulos de nível superior. Em qualquer caso, é lamentável.

Isto posto, vamos ao que me interessa nesta pequena nota. O governo Bolsonaro divide, com todos os outros governos do mundo e todos os partidos políticos, uma posição ideológica. As pessoas em geral, o conjunto de indivíduos de uma população também, não escapam de ter posições ideológicas muito facilmente identificáveis, mesmo quando não se dão conta disto.

Dentro do espectro ideológico se acomodam posições muito variadas, desde uma extrema-esquerda até uma extrema-direita. As democracias representativas liberais geralmente se organizam ao redor de três grandes grupos: de centro-esquerda, geralmente com a liderança de um partido mais à esquerda, de centro-direita, também com a liderança de um partido mais à direita, e um centro composto de partidos que tendem para um lado ou outro, ao sabor das contingências e dos interesses conjunturais. Os eleitores também tendem a obedecer a mesma lógica. Os extremos são representados por pequenos partidos, legítimos em toda a democracia, mas que não têm força para abalar o jogo como um todo.

O que aconteceu no Brasil foi uma profunda ruptura deste quadro, quando a desorganização do pacto político que sustentava o Brasil, pelo menos desde a promulgação da Constituição de 1988, proporcionou que um obscuro, despreparado e caricato político de extrema-direita fosse alçado à presidência da república. Isto não aconteceu por acaso, nem pelas qualidades de liderança do político em questão.

Várias circunstâncias levaram Bolsonaro à Presidência da República, já por demais discutidas e analisadas, mas é mister reter aqui que isto provocou um deslocamento no espectro ideológico dos partidos e dos eleitores que migraram da centro-direita para a direita, e da centro-esquerda para o centro. Este, por sua vez, também fez seu movimento no sentido da direta. A centro esquerda minguou e a esquerda ficou isolada.

O governo Bolsonaro é a concretização, pouco provável no Brasil até 2014, de um governo de extrema-direita, representado por uma coleção de generais de 4 estrelas em altos postos e por todos os seus ministros civis. Entre eles, Paulo Guedes é representante do ultraneoliberalismo, do sistema financeiro internacional e do desprezo por qualquer tipo de política social que tome alguma atitude na direção de minimizar a histórica desigualdade social do país; Sergio Moro, um juiz de 1º instância, tornou-se um popular xerife da direita, transformando as políticas anticorrupção (na verdade, garantidas por políticas implementadas nos governos do PT) em uma deslavada perseguição ao Partido dos Trabalhadores e seus maior líder, o ex-presidente Lula. Seu projeto de segurança pública, mandado ao Congresso Nacional, segue princípios arcaicos e conservadores, fortemente criticados por parte significativa dos estudiosos da ciência jurídica. Ainda há Luis Henrique Mandetta, Ministro da Saúde, deputado do DEM de Goiás que, no primeiro ano de governo, esteve sempre na contramão do SUS e a favor dos grandes conglomerados da medicina privada no país, desassistindo completamente a população pobre.

Mas o Presidente da República se cerca de um grupo ainda mais restrito, mas não menos poderoso, com poder econômico, interesses muito bem definidos e uma compreensão imediatista dos interesses do capitalismo imperial, neoliberal em curso. Este grupo está formado preferencialmente por algumas poderosas igrejas pentecostais e pela elite da contravenção no Rio de Janeiro. Tem uma base eleitoral não desprezível, tanto nestas elites quanto em setores que haviam ascendido durante os anos de crescimento econômico e de políticas sociais dos governos petistas e que agora acusam o mesmo PT de suas atuais condições de penúria. Há também uma pequena burguesia, no sentido marxiano do termo, muito próxima a este grupo. Quem melhor representa estes interesses é Bolsonaro, seus filhos e ministros igualmente caricatos, como uma pastora que tem visões, uma atriz de extrema-direita, um playboy decadente e um diplomata terraplanista, tendo como liderança intelectual um astrólogo fracassado. Tal grupo mambembe seria cômico, se não fosse trágico.

Este não é, como quer fazer crer a grande mídia, o lado mau do governo, o lado incompetente do governo, o lado ideológico. É tão ideológico quanto todo o resto, só mais ignorante, mais ridículo, mas foi o preço que a direita palatável aos meios de comunicação e os setores “cultivados” da classe média aceitaram pagar para afastar qualquer possibilidade de governos com preocupações sociais e políticas dirigidas à diminuição da desigualdade social no Brasil.

E, para não deixar de falar do tema que ocupa todas e todos os brasileiros no momento, resta pensar como a grave crise sanitária, pela qual atravessa o mundo em geral e o Brasil particularmente, se reflete em cada um destes dois grupos no governo.

No primeiro, dos ideológicos comprometidos com o grande capital e com os interesses internacionais, a crise sanitária aparece como uma grave ameaça e deve ser combatida com as melhores técnicas, dentro dos princípios da OMS e da ciência. Não interessa um país com mortes aos milhões. Mandetta no Ministério da Saúde e suas políticas acertadas não o transformam em um líder popular, nem em um defensor da saúde pública. As consequências de suas ações no momento, sejam quais forem suas razões, interessam sim ao povo brasileiro, principalmente aos mais pobres. O discurso cínico de Guedes, sobre a preocupação com os desempregados e informais, tem razões completamente alheias à sobrevivência desta população, mas tem efeitos colaterais positivos sobre ela.

Não há espaço nem tempo para dois tipos de ingênuos neste momento: aqueles que acreditam na conversão dos ministros de Bolsonaro e aqueles que se sentem moralmente impolutos, geralmente com seus salários garantidos todos os meses, e partem para o ataque, com pânico de que Mandetta se torne um político popular e venha a tirar da esquerda a possibilidade de vitória na eleições de 2022. Pobre esquerda se este é o medo!

Para finalizar, uma palavra sobre a aversão do grupo bolsonarista íntimo contra toda e qualquer política com base na OMS, ou nas pesquisas científicas. Em primeiro lugar, ironicamante, dividem com a esquerda ingênua o medo de que Mandetta se torne um político popular, mas, para além disto, precisam preservar os interesses de seus apoiadores, isto é algumas grandes Igrejas e os detentores de negócios obscuros ligados a elite da contravenção no Rio de Janeiro. Para este grupo, um povo demente, assustado, com um remédio pseudo milagroso nas mãos, achando que o governo finalmente permitiu que trabalhasse e que a pandemia é efeito da ira divina, em um mundo de pecadores, é o melhor dos mundos.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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