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18 de dezembro de 2019
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17:51

“Mais uma vez, temos de começar a lutar para ter direito a ter direitos”

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Sul 21
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“Mais uma vez, temos de começar a lutar para ter direito a ter direitos”
“Mais uma vez, temos de começar a lutar para ter direito a ter direitos”
Título foi entregue durante sessão solene do Conselho Universitário. (Foto: Secom/UFRGS)

Céli Pinto (*)

Manifestação de Céli Pinto por ocasião da cerimônia no Conselho Universitário quando recebeu o título de professora emérita da UFRGS. (17 de dezembro de 2019)

Este é um momento muito importante na minha vida, certamente um dos mais importantes e emocionantes que vivi nesta Universidade, ao longo de muitas décadas. E este é também um momento de muitos agradecimentos e reconhecimentos, não agradecimentos protocolares, mas agradecimentos que estão inundados de muita emoção.

Em primeiro lugar quero agradecer aos meus colegas, amigos queridos, ex alunos e ex orientandos de mestrado Temístocles Cesar e Claudia Wasserman que  trouxeram ao  egrégio Conselho  Universitário  meu nome para ser submetido a concessão deste título. Eu sei que eles sabem o lugar que ocupam na minha vida e nos meus afetos, mas é preciso dizer hoje isto em público, hoje é preciso agradecer: obrigada meus queridos.

Quero falar do Departamento de História. Eu o vi nascer como aluna, quando da criação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, que substituiu a velha Faculdade de Filosofia, tudo funcionava ainda aqui no prédio ao lado.

Até hoje , há uma fotografia  na gabinete da Chefia do departamento  que  muito me orgulha. Toda vez que entro naquela sala não consigo  deixar de dar uma olhadinha. A foto é de uma das primeiras reuniões do departamento e lá estou eu, em meus 20 anos, sentada  em meio aos professores, como  representante dos estudantes. E aquela época não foi fácil. Estávamos vivendo em plena ditadura militar sob a égide do AI5 e do Decreto 447 que expulsava estudantes como subversivos das universidades e os   proibia de frequentá-las por 10 anos.  Mas não nos calamos frente aos desmandos daquela ditadura. A universidade, desde então, aprendeu a não se calar. Portanto, não nos calaremos, ninguém nos calará.

No departamento de história me graduei Licenciada e Bacharel e para ele voltei quando conclui meu doutorado em Ciência Política na Inglaterra.

Fui coordenadora de seu PPG ainda nos seus primeiros anos. Este que é hoje   um dos mais importantes pós-graduação em história do país. Anos depois, fui acolhida por este departamento, em uma demonstração de grande solidariedade, em um momento em que minha carreira acadêmica esteve seriamente ameaçada. Sou professora titular do departamento de história. Sou professora aposentada convidada do PPG em História e foi do conselho deste PPG a iniciativa de propor meu nome para receber o título de professora emérita.

Ao Departamento de Historia, ao PPG, a todos seus professores,  secretários, bolsistas, alunos de graduação, de mestrado e doutorado meu emocionado agradecimento, eu devo a vocês muito, mas muito mesmo da minha vida acadêmica, vocês são a minha casa.

Não posso deixar também de agradecer ao Conselho do IFCH pela aprovação do meu nome a esta indicação. A todos os professores, os técnicos, os representantes de alunos que formam o Conselho, obrigada. Eu tenho um imenso orgulho de ter sido aluna do IFCH, de ter sido professora de um incontável número de alunos e alunas  de graduação de mestrado e doutorado, entre os quais se encontra  um expressivo número de seus atuais professores e professoras  e, de   ter sido sua diretora.

E  por fim um agradecimento muito especial ao egrégio conselho universitário que me honrou com o título de professora emérita.  Eu me sinto muito distinguida de estar aqui nesta condição, até pela coincidência de ser hoje presidente do CONSUN o Reitor Rui Oppermann. Nossas histórias no Conselho, começaram ao mesmo tempo, quando sentávamos, lado a lado, representando nossas unidades como diretores. Eram tempos de muitas esperanças.

A lista de agradecimentos poderia se estender por páginas, porque a vida de cada um de nós é feita destes encontros, que nos acolhem, nos embalam, que nos fazem crescer, que nos dão força e esperança. Como nos ensinou o grande sociólogo francês, somos muito mais do que nossa ilusão biográfica individual.

Mas, para além dos agradecimentos eu quero dedicar este título a todos os alunos e alunas que tive na vida, de graduação, de mestrado de doutorado. A meus bolsistas de Iniciação cientifica, orientandos de TCC, de mestrado e de doutorado. A universidade, nós docentes, existimos por vocês e para vocês.  Tenho tido sempre um grande prazer em dar aulas e um profundo sentido de obrigação e responsabilidade. E ao longo de mais de 3 décadas a cada novo curso, a cada novo primeiro dia de aula sinto uma salutar insegurança e ao longo do semestre, não canso de me perguntar: Estará este  curso  fazendo sentido para eles?

Talvez esta seja a razão pela qual ser professora, ser professor é sempre algo mais do que um trabalho, do que um emprego. É a tarefa de ensinar, de abrir possibilidades, de expor as pessoas a temas, a problemas, a autores, a novas aventuras intelectuais. Talvez nossa tarefa de ensinar é a de desorganizar as certezas, porque as certezas paralisam nossa capacidade de aprender, de duvidar. Talvez seja por isso, mais do que por qualquer outra coisa, que somos temidos por aqueles que se arvoram donos da verdade.

Mas também fui aluna e tive grandes professores, e me alongaria demais citando todos e todas que fizeram parte da minha formação, que me inspiraram, que foram exemplos. Quero citar duas pessoas e assim fazendo quero agradecer e homenagear  todos meus professores e  professoras. A primeira pessoa que quero homenagear é a professora Helga Piccolo, nossa grande professora de História do Brasil, a primeira professora emérita da UFRGS vinda do IFCH, a primeira doutora do departamento de história. Suas aulas são inesquecíveis, por sua dedicação, por sua oratória, por seu  profundo conhecimento  de história do Brasil,  por seu imenso comprometimento com a ciência histórica e porque não dizer, por suas temidas provas.  Muitos dos que aqui estão hoje, foram alunos e alunas da Professora Helga, e sabem do merecimento desta minha homenagem.

A segunda pessoa,  trata-se de uma homenagem póstuma, é  ao meu orientador de tese de doutorado Ernesto Laclau, grande filósofo, grande teórico da política, um historiador de profissão, Laclau que se tonou um dos mais importantes intelectuais  no mundo  do fim do século  XX e primeira década do século XXI , foi fundamental na minha formação por muitas razões, por sua erudição, por sua forma original de pensar, por suas densas, difíceis e brilhantes obras, por seu comprometimento político com a democracia, com a igualdade e com a justiça social.

Antes de tudo, Ernesto Laclau me ensinou a pensar livremente, a não ter medo do novo, a abandonar dogmas, a ter coragem para ousar intelectualmente. Ernesto faz muita falta, foi um amigo querido que perdi em 2014. Eu sinto muita falta de sabe-lo vivo. Falta de esperar pelo próximo livro, pelo próximo encontro.

Ingressei na UFRGS como docente em 1981 e me aposentei em 2017. Ao longo destes quase 40 anos vivi muitas experiências nesta universidade, fui docente, pesquisadora, gestora, membro de câmaras do CEPE e do Conselho Universitário.

E é deste tempo, dos 4 anos que estive no conselho, entre 2005 e 2008, que eu gostaria de falar agora. Por quatro anos, sentada na segunda fila tendo o privilégio de admirar, sem nunca me cansar, este magnifico painel de Aldo Locatelli, junto com meus  colegas lutei muitas lutas. Lutamos a boa luta, mas há especialmente uma que eu gostaria de mencionar, porque se nada mais tivesse eu feito na vida acadêmica, ter ganho esta luta já teria valido a pena.

Fui indicada pelos meus pares do Conselho Universitário para fazer parte da Comissão Especial de implementação das cotas raciais na universidade. Tive a honra de ser escolhida pelos membros da comissão, sua presidenta.  E foi um tempo muito especial, de muitas reuniões, muitas idas e vindas, muitas pressões de todos os lados, ouvimos muito, ouvimos os movimentos sociais, ouvimos os colegas. Havia momentos que tínhamos esperanças, outros, que quase desistíamos.

Neste país, que nos envergonha por sua profunda desigualdade  social, uma das maiores do mundo; que nos envergonha por seu passado escravista e seu racismo explícito, a luta foi grande. Aqueles que lá estavam sabem que alguns momentos chegaram a  ser assustadores. Mas nós conseguimos fazer passar no Conselho Universitário desta universidade as cotas sociais e raciais. E hoje, quando caminho pelos campi da UFRGS, quando entro em uma sala de aula de graduação ou de pós graduação eu tenho certeza, que a luta valeu a pena.

Mas não podemos nos acomodar com vitórias passadas. Temos de estar alertas. Estamos hoje vivendo um momento de grande tensão. A Universidade está sob ameaça, a democracia está sob ameaça, nossas vidas, como vidas com direito a serem vividas, estão ameaçadas.

Mais uma vez, como disse  a grande Hannah Arendt temos de começar a lutar para ter direito a ter direitos.

Não é coincidência que neste momento a ciência e a democracia estejam ameaçadas no Brasil.  Entre a ciência e a democracia há muito mais em comum que uma primeira mirada possa indicar.

A ciência e a democracia necessitam de liberdade para existirem, de incertezas, de cruzarem fronteiras do conhecido, de experimentar, de ousar até chegarem a avanços que rompam com consensos e com paradigmas. A ciência e a democracia são, por isso, revolucionárias em suas essências.

A democracia tem instituições, leis e cidadãos e cidadãs de direito, a ciência também tem instituições, métodos e cientistas, mulheres e homens, altamente qualificados.  Tanto a democracia como a ciência são destemidas, estão sempre querendo mais, estão sempre querendo romper barreiras.

Nem a democracia, nem a ciência convivem com desmandos irresponsáveis. Não aceitam verdades autocráticas, autoritárias, messiânicas.  Não tem mitos, não aceitam atos discricionários. Tanto a ciência como a democracia têm muitas responsabilidades e não podem aceitar  censuras e limites, venham de onde vierem.

O sonho de todo o totalitarismo é a certeza absoluta, é a verdade única, é fixação entre significante e significado para sempre.  Qualquer ensaio de regime autoritário, de regime com feições facistoides, mesmos os mais mambembes, sentem-se ameaçado pela democracia e pela ciência.

A democracia e a ciência fazem muita balbúrdia nas certezas  impostas por poderosos da ocasião.

A democracia é o regime da liberdade, mas não há liberdade sem igualdade. O gregos sabiam disto. Nós historiadores, cientistas sociais, educadores, sabemos o quão imperfeito foi aquele modelo ateniense. Mas muitas vezes no afã da crítica, esquecemos de uma lição da Grécia clássica, só há democracia entre iguais. Só há liberdade entre iguais.

Se a ciência e a democracia necessitam de liberdade, necessitam por conseguinte de igualdade. Não podemos fazer ciência entre poucos e para poucos aceitando a imoral desigualdade social do Brasil e achando que isto não tem consequências, algumas irreparáveis, para a ciência, para a democracia e principalmente para as novas  gerações.

A universidade não pode ser a responsável pela democracia no país, mas tem um papel a cumprir e tem   cumprido ao longo de sua história, com maior ou menor sucesso.  Ganhamos muitas batalhas, perdemos outras. Mas as dificuldades nunca nos fizeram esmorecer,  sobrevivemos a uma ditadura militar, sobreviremos agora.

Não podemos faltar a nossa missão de formar profissionais, de fazer ciência, de nos comunicarmos com a sociedade, de refletirmos  criticamente sobre o Brasil e o mundo.

Magnífico Reitor, meu caríssimo amigo Rui, companheiro de tantas lutas,  saiba que enquanto eu tiver vida, enquanto eu tiver força, eu  me sentirei responsável por lutar pela nossa UFRGS, lutar  pela universidade pública, gratuita, de qualidade e  inclusiva. Enquanto eu tiver vida e tiver força eu me sentirei responsável por lutar por liberdade e igualdade  neste país  chamado Brasil.

Muito Obrigada!

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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