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15 de novembro de 2019
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17:02

A perversa originalidade do Brasil

Por
Sul 21
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A perversa originalidade do Brasil
A perversa originalidade do Brasil
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Céli Pinto (*)

Às vezes é quase irresistível compor esquemas que explicam tudo, especialmente em momentos de grande crise. Um modelo que pudesse dar coordenadas para entender desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, até a queda de Evo Morales, na Bolívia, neste fim de 2019. Alguns leitores ou leitoras, ao lerem esta frase, certamente logo se apressaram a dizer: “é lógico que há!”. Posso até concordar, mas tenho a percepção de que estes grandes esquemas, ao mesmo tempo, explicam tudo e também muito pouco, ou quase nada, ainda que apaziguem os mais radicais ou os mais ansiosos. Logo, em vez de aspectos gerais, buscarei algumas especificidades para tentar entender o que está acontecendo em “nuestra sudamerica”.

Cinco países na América do Sul, neste momento, vivem situações políticas muito delicadas e bastante distintas: Venezuela, Bolívia, Chile, Argentina e Brasil. Há características comuns entre eles, mas o que chama a atenção neste quinteto são suas diferenças, as experiências diversas que os constituíram nas últimas décadas. Entre eles, para o bem e para o mal, o Brasil se destaca por sua originalidade.

Estes países podem ser separados em três grupos: Venezuela e Bolívia, Argentina e Chile e Brasil.

A Venezuela e a Bolívia viveram  experiências de democracia popular radical através de dois líderes, Hugo Chaves e Evo Morales. Nestes países, houve clara ruptura com as instituições clássicas da democracia liberal. Seus dois presidentes compartilham características importantes: estiveram muito próximos das classes populares e diminuíram a pobreza durante seus governos. Chaves chegou ao poder em 1999 e, entre este ano e 2010, a pobreza na Venezuela caiu de 49,4% para 27,8 (www.cepal.org ) . Em 2013, depois de quase 14 anos, Chaves morreu de um câncer, e seu atual presidente, Nicolás Maduro, herdou o poder. Na Bolívia, Evo Morales, um líder sindical dos cocaleros, chegou ao poder em 2006 e governou até há poucos dias, quando sofreu um golpe de estado. Durante o governo de Morales, a pobreza extrema diminuiu 19.9 pontos, passando de 36.7.7 para 16.8% , segundo os dados de relatório da ONU em 2016, quando da comemoração do Dia Internacional para Erradicação da Pobreza (www.un.org). Estes dois presidentes são semelhantes em suas capacidades de liderarem políticas que diminuíram a pobreza de forma significativa, mas também foram políticos que construíram ao redor de si uma mitologia, o que impediu que a experiência fosse capaz de continuar sem as suas presenças no governo. Chaves mudou a constituição através de um plebiscito vitorioso para se reeleger, Morales tentou sem sucesso a mesma estratégia.

O fracasso da continuidade da experiência venezuelana e a crise que levou ao golpe de estado na Bolívia tem semelhanças e diferenças. As semelhanças estão no personalismo dos lideres e na dificuldade estrutural de implementar um modelo democrático novo, popular e para além da democracia liberal representativa. Isto impôs um espaço de incerteza muito grande no regime, que foi facilmente articulado pelas oposições como prova de autoritarismo e ataque à democracia. Os oposicionistas encontram forte apoio e são incentivados pelos interesses dos Estados Unidos, que novamente voltam seus canhões para o antigo quintal.

Entretanto, nesses países, há algumas diferenças importantes a serem pontuadas. A Venezuela vive uma crise econômica profunda, com um presidente fraco, caricato e colocado no poder quase por acaso, após a morte de Chaves. Por outro lado, enfrenta uma oposição organizada, com popularidade e apoio internacional, mas o aparentemente frágil Maduro não é deposto. A Bolívia tem um crescimento econômico invejável, números relativos à educação e à diminuição da pobreza destacados nos relatórios da ONU e, diferentemente da Venezuela, possui uma oposição desorganizada e incapaz até de tomar o poder, mesmo após o golpe que depôs Morales. A diferença fundamental entre a permanência de um e a queda de outro parece estar no apoio dos militares a Maduro e na traição dos militares a Evo Morales. Pesquisas necessitam aprofundar a relação entre militares venezuelanos, Maduro e os interesses relacionados à extração e venda de petróleo. A Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo. Maduro não é um líder que se forjou nas classes populares, é uma invenção de Chaves. Evo Morales tem base popular, mas perdeu o apoio dos militares e da polícia.

Venezuela e Bolívia são os exemplos mais acabados do que poderia ser chamado de experiência populista de esquerda. Mas o esgotamento do modelo deixa no ar duas questões: como resolver o problema do personalismo, claramente visível na centralidade das figuras de Chaves e Evo Morales? É possível radicalizar a democracia mantendo as bases do regime capitalista na sua atual fase, onde a necessidade de acumulação exige uma profunda precarização do trabalho, desemprego e diminuição dos direitos civis e sociais?

O segundo grupo, composto pelo Chile e a Argentina, apresenta características muito distintas do anterior. As semelhanças, entretanto, são importantes: ambos sofreram sanguinárias ditaduras durante a segunda metade do século XX (o Brasil também, mas falarei sobre isso mais abaixo) que desestruturou completamente o sistema político, fechou o legislativo, acabou com as eleições e colocou os partidos na ilegalidade. A redemocratização, apesar de ter acontecido em circunstâncias muito distintas, tem uma característica comum que não é de menor importância: o sistema político partidário, anterior aos regimes ditatoriais, ressurgiu quase intacto: no Chile, o Partido Democrata Cristão e o Partido Socialista; na Argentina o justicialismo peronista e o União Radical. Só em 2005, na Argentina, apareceu um partido declaradamente de direita, fundado por Maurício Macri, que se tornou presidente.

Atualmente, o Chile experimenta um difícil momento, com o povo nas ruas exigindo reformas a um governo de centro-direita. Apesar, de centro-esquerda e centro-direita terem se revezado no poder, nenhum enfrentou o modelo econômico neoliberal instaurado no Chile, ainda sob a ditadura de Pinochet. Mesmo que Michelle Bachelet tenha feito reformas no setor da educação, as aposentadorias miseráveis e os serviços privatizados continuam a empurrar parte significativa da população para a pobreza. A Argentina, por sua vez, sofre uma profunda e duradoura crise econômica, que a política ultra-neoliberal de Macri (que prometera o milagre do crescimento e do “emprendedorismo”), acentuou a níveis dramáticos. A vitória do peronismo nas últimas eleições, com a volta de Cristina Kirchner ao centro da política argentina, mesmo como vice-presidenta, foi a resposta do povo.

O Chile e a Argentina estão muito afastados das experiências mais radicalizadas da Venezuela e da Bolívia. Mesmo o populismo peronista de Cristina está longe do que aconteceu naqueles países. Ao que tudo indica, ambos se organizam em torno de dois grandes grupos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, e se aproximam da esquerda ou da direita, mais ao sabor do vento do que de proposta ideológica. Piñera, presidente eleito pela direita chilena, no auge da crise do povo nas ruas, chamou em seu auxílio Michele Bachellet, sua mais fulgurante adversária política e atual Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos. Macri, massacrado nas urnas por Alberto Fernandéz, chamou-o para um café da manhã um dia após os resultados eleitorais. Dificilmente o Chile sairá do caminho traçado até aqui em termos de pacto político; sobre a Argentina, é esperar para ver. No entanto, a presença de sistemas partidários sólidos dá uma feição sempre mais centrista a estes dois países.

Já o Brasil, é caracterizado pela originalidade por muitos motivos. Ele contém traços de ambos os grupos, mas é diferente. Ao ser comparado com Venezuela e Bolívia, destacam-se a presença de Lula como um grande líder popular e os governos petistas, com suas experiências de democracia participativa. No entanto, Lula foi um líder que obedeceu regiamente a Constituição e não a mudou para permanecer no poder (o responsável pela PEC que permitiu a reeleição foi o presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foram instauradas práticas de pagamento de deputados para obter votos favoráveis). Também os governos do PT, apesar de preocupados com políticas sociais e com a diminuição da pobreza, o que de fato aconteceu, sempre foram afáveis com o capital, sem ameaçá-lo de nenhuma forma. Na verdade, Lula ameaçou mais o imaginário de uma classe média privilegiada, certamente uma das mais privilegiadas do mundo.

Diferentemente do Chile e da Argentina, a ditadura, mesmo sangrenta, não fechou o legislativo, manteve as eleições e acomodou a direita e o centro em dois partidos políticos que fizeram o papel de situação e oposição durante os anos militares: a ARENA e o MDB. Estes pseudo-partidos arregimentaram velhas elites e, quando da redemocratização, tinham ocupado espaços que não possibilitavam a volta das velhas agremiações. Mas, juntamente com o não retorno dos velhos, surgiu no Brasil uma novidade, um partido nascido fora das rodas parlamentares, que reunia sindicalistas, intelectuais e setores progressistas da Igreja Católica.

O Partido dos Trabalhadores foi a mais importante novidade política de esquerda na América Latina, depois da revolução cubana de 1959, malgrado suas abissais diferenças. O PT mudou o panorama do mapa político e colocou as lutas populares em outro patamar. Ao contrário da Venezuela e da Bolívia, o líder crescia com o partido, era criador e criatura do PT e tinha junto a ele uma nova elite política que, ao chegar ao poder em 2003, era composta de governadores, muitos prefeitos, deputados estaduais, federias e vereadores. O governo Lula e os que o seguiram tinham um grupo significativo de políticos com experiência, tanto legislativa como executiva.

Diferentemente do Chile e da Argentina, o PT representava o novo e não tinha o ranço do velho populismo das décadas de 1950/1960, sempre presente no peronismo. Também, diferente destes dois países, o Brasil sofreu um ataque brutal ao seu sistema político partidário através da chamada Operação Lava-jato, só comparável ao que aconteceu com a Operação Mãos Limpas na Itália. Ela foi arquitetada de forma juridicamente original e controversa, para dizer o mínimo, através de uma ação combinada e solidária do ministério público com o judiciário, onde o juiz julgador indicava testemunhas de acusação de seus réus preferenciais aos procuradores. Suas ações, pautadas por prisões a granel e delações premiadas de toda a sorte, fez mais do que desorganizar o sistema político partidário. Com a colaboração da grande mídia televisiva, colocaram de um lado a política e de outro lado o cidadão, construindo um antagonismo perverso, que estraçalhou as bases de sustentação da democracia, contidas na Constituição de 1988.

A vida política e o debate público, tão duramente conquistados com a redemocratização no país, foram postos na lata do lixo pelos donos de mídias, pelo judiciário, por setores da classe média inculta e amedrontada e mesmo por setores das camadas populares que, sentindo-se órfãos, acabaram caindo nas redes dos pastores milionários, que prometem prosperidade em troca de dízimos.

Também por força de sua original forma de agir, a Operação Lava-jato manteve empresários milionários (mesmo que alguns tenham ficado na prisão por pouco tempo) e destruiu as grandes empresas brasileiras, causando desemprego e incalculáveis prejuízos à economia do país. Se lideres da Lava-jato tivessem alguma responsabilidade com o povo e com a própria economia do país, deveriam ter se inspirado no que acontece nos Estados Unidos, onde os empresários são punidos mas as empresas são salvas.

A mesma Lava-jato resolveu também a difícil questão da sobrevivência do líder colocando Lula na cadeia, com o aval e simpatia dos demais partidos políticos brasileiros, e principalmente do PSDB, que supunha, desta forma, ter chance de voltar ao poder. Ledo engano. Nem Lula era Chaves ou Evo Morales, nem o PT era um partido criado apenas para sustentar um líder populista.

Mas a originalidade do Brasil não para aí. A exemplo do período militar, o Brasil sempre consegue construir um arremedo de democracia, mesmo nos momentos mais graves. Depois de depor uma presidenta eleita e colocar na cadeia o candidato que estava em grande vantagem em todas as pesquisas de opinião, elegeu uma figura inexpressiva, arrogante, inculta e completamente despreparada para ser Presidente da República. O atual presidente do Brasil se comporta, dentro e fora do país, como chefe de gangue, não entendeu até agora o sentido do cargo, nem sua liturgia. Grita desvairado, fala impropérios e palavrões, desrespeitando seus próprios companheiros de governo, promovendo seus filhos a autoridades acima do bem e do mal.

Ao contrário dos demais países aqui lembrados, este é um governo de extrema-direita que se inspira no regime cívico-militar instaurado em 1964, eleva torturadores a heróis nacionais, persegue a cultura e a ciência, promove o fundamentalismo religioso e a intolerância. Talvez o Brasil seja o sonho de alguns bolivianos, venezuelanos, chilenos e argentinos, mas será apenas só um sonho. Este país chamado Brasil está vivendo sua originalidade perversa. Nós chegamos onde os outros quatro países terão condições de evitar.

Em síntese, o Brasil é o exemplo mais vigoroso que democracia , e com muito mais razão democracia radical e popular, não tem espaço na atual quadra do capitalismo. Certamente só o terá em uma sociedade pós capitalista.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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