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30 de julho de 2019
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23:09

Chamemos as coisas pelos nomes que elas têm

Por
Sul 21
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Chamemos as coisas pelos nomes que elas têm
Chamemos as coisas pelos nomes que elas têm
Jair Bolsonaro e Sergio Moro. (Foto: José Cruz/Abr)

 Céli Pinto (*)

O Brasil caminha, cada vez com mais velocidade, para um estado de anomia total. Onde a lei não tem importância, as instituições estão sendo usurpadas, nem um mínimo espírito republicano é respeitado pelas autoridades do executivo. E, o que é mais grave, não há acontecimento, evento, ações capazes de provocar movimentos contrários ou, pelo menos, de sustar este avassalador avanço.

O atual presidente da república age como um fanfarrão de bar de calçada em fim de noite, sem que isto provoque qualquer reação. Diz os maiores impropérios e eles são apenas citados como parte do “dia do presidente”. Ofende o povo nordestino, os indígenas, as instituições, ofende o parlamento, os próprios militares, ofende jornalistas, vomita sobre a memória dos assassinados na ditadura militar e tudo é tomado como normal. O presidente passou a ser uma figura grotesca, um simplório populista. E parece que seus seguidores esperam felizes pela próxima parlapatice. Ofende o povo dizendo que no Brasil não se passa fome, o que é visto apenas como mais uma graça do presidente. Acolhendo pastores milionários, se diz enviado de Deus. E o povo grita e “ora” aos milhões nas ruas para que Jesus Cristo lhes traga um emprego.

Mas isso não é tudo. O ex-capitão desqualifica instituições de grande respeitabilidade, como o IBGE e o INPE, num estilo próximo de rei retardado de filmes B, e nada acontece. O astronauta, Ministro da Ciência e Tecnologia, lhe dá razão.

Os demais ministros também fazem o que querem. Paulo Guedes destratou o parlamento, impôs uma reforma da previdência como quis e o presidente da Câmara de Deputados conseguiu uma vitória na qual nem o próprio governo acreditava. O Ministro da Educação não tem nenhuma responsabilidade com a educação e suas aparições públicas lembram a figura antiga de um playboy mimado que gosta de fazer estrepolias para ver a reação do público na balada. A Ministra da Mulher e Direitos Humanos vacila entre a total desqualificação e a total falta de integridade moral, cometendo absurdos como o de culpar meninas de 9 e 10 anos de seus próprios estupros por não usarem roupas íntimas. O ministro da Justiça parece que ainda não entendeu que não está brincando de super-herói. Sua fragilidade intelectual, sua integridade periclitante e alguns problemas de ordem cognitiva facilmente perceptível se adequam completamente com o governo do capitão. Ele é a mais perfeita tradução de uma figura simplória, subdotada, vaidosa e com poder. Tem também o ministro que não aceita dados de pesquisa da FIOCRUZ porque vê viciados em droga em suas caminhadas em Copacabana. Também tem o Chanceler, cujas declarações estapafúrdias poderiam se estender por páginas, mas nada provoca nada. Tudo faz parte deste incrível governo.

Pior que o apoio descarado é o silêncio amoral. Na Alemanha, uma parte da população foi claramente nazista, mas não se manifestou, não pertenceu ao partido. Tinha pleno conhecimento do que estava acontecendo, mas ficou quieta porque achava que seria para ela melhor. A obra da filósofa Hannah Arendt aponta com brilhantismo a responsabilidade deste grupo. Estamos frente a um cenário muito parecido.

Por muito tempo, Lula foi proibido de dar entrevistas. Lula deu entrevistas, várias entrevistas. No que isso resultou? Em nada, absolutamente nada. Além de matar a saudade de sua inteligência, não resultou em nada. Agora Glenn Greenwald, através do Intercept, com a Folha de São Paulo e a Revista Veja, revela a trama que levou Lula à cadeia, os arranjos pouco republicanos do ex-juiz Moro e de parte da procuradoria da República. O que as revelações estão provocando? Nada. O importante agora são os hackers, eles estão nas manchetes dos jornais e nos noticiários de TV. O que as revelações mudarão na cabeça das pessoas? Nada. O que mudarão na cabeça de juízes e ministro das altas cortes? Nada. Nada tem importância.

Quem chegou ao poder fez um esforço hercúleo para tal, destruiu o sistema político partidário do país, transformou a corrupção no princípio de todos os males. E como foi fácil fazer isto! Convencer um povo desempregado, em um país em crise econômica, de que a culpa é da corrupção e que o capitalismo neoliberal em crise não tem nada a ver é facílimo. Convencer que o triplex atribuído a Lula é sinônimo de corrupção e, portanto, da crise, também é fácil. Uma das razões pelas quais o fascismo se instaurou historicamente foi a simplificação do discurso político, o que tem sido feito com grande habilidade desde 2013 no Brasil. Não se fez o impeachment de uma presidenta contra qual não existia nada para perder o poder logo ali.

Quem se instaurou no poder vai muito além do ex-capitão e seu ministério, que mais parecem o incrível exército de Brancaleone. Quem se instalou no poder foram os interesses do capitalismo financeiro que acabou com qualquer possibilidade de aspiração de uma burguesia industrial (que, diga-se de passagem, abriu mão de ser industrial). Quem se instaurou no poder foram os interesses do capitalismo internacional neoliberal, mas não só. As burguesias nacionais e internacionais têm o apoio de estamentos da classe média alta, estabelecida nos grandes postos do serviço público e nas profissões liberais. Há mais do que uma trama entre estes grupos, há uma comunidade de interesses que se viu ameaçada nos governos do PT. Não é crível que um profissional liberal, seja de que profissão for, ou um membro do alto escalão do judiciário não consigam ver o absurdo deste governo. Obviamente veem, mas não se importam. Fazem de conta que não estão vendo. Há um interesse difuso e forte que amalgama a todos, tornando-os dóceis aos absurdos, à violência policial, à matança, à fome. E se, por acaso, o terror ameaçar suas cômodas posições, dirão candidamente, como um dia já disseram, “nós não imaginávamos que iria ser assim”. São os nazistas de Hannah Arendt.

Parece-me que, neste momento, parte significativa das classes médias, da classe política de centro e centro-direita, das autoridades do judiciário, da mídia em geral está a se perguntar: qual o preço de denunciar o que está acontecendo? Será que isso provocaria uma reação popular descontrolada? Será que ameaçaria a cuidadosa e “maquiavélica” arquitetura montada para afastar do poder a centro-esquerda?

Chamemos as coisas pelos nomes que elas têm: bem vindos ao fascismo.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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