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30 de maio de 2019
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17:44

Trata-se de uma catástrofe

Por
Sul 21
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Trata-se de uma catástrofe
Trata-se de uma catástrofe
Em ato pró-Bolsonaro, manifestantes arrancam faixa em defesa da educação na UFPR. (Reprodução/Youtube)

Céli Pinto (*)

O processo de desdemocratização em curso no Brasil é radical, tem objetivos claros e vem dando passos largos muito rapidamente. É um engano crasso pensar que o país será mais ou menos democrático à medida que as reformas pretendidas forem ou não aprovadas.

A questão central a ser tomada em consideração é que o projeto do governo é  intrinsecamente excludente, se vitorioso provocará a desnacionalização de todos os  próprios públicos, tornará o emprego, quando disponível, ainda mais precário, o ensino mais inacessível, a aposentadoria praticamente impossível e as prisões cada vez mais superlotadas. Estes efeitos atingem de forma diferente variados grupos na sociedade, sofrem ainda mais os negros, as mulheres pobres, os indígenas, a população LGBT, os que vivem nas regiões mais pobres, os velhos e as crianças.

Também a população branca de classe média pagará seu preço, mas esta resolveu pagar e tem toda a responsabilidade sobre seu próprio destino. Este projeto só compensa às burguesias urbanas e rurais e ao capitalismo financeiro internacional.

Para buscar alcançar seus objetivos o projeto necessita calar todas as forças vivas da sociedade, todas as forças pensantes. O furor contra a educação, vindo do Ministro da Educação, não é apenas um ataque de estupidez e estultice. Seria bom se fosse só isto,  mas não é, revela também o imenso medo do que se pensa nas universidades e do que os professores da educação básica ensinam nas escolas. Isso não se deve ao fato de todos serem marxistas e revolucionários, até porque esta gente que domina o governo não tem condições intelectuais de identificar um pensamento marxista.  O fato é que a maioria dos professores ensina a pensar. Se qualquer ministro do atual governo assistir uma aula de filosofia na universidade que analise a tese de doutorado de Hannah Arendt sobre Santo Agostinho, chamará a polícia para investigar a presença do comunismo. O elogio à ignorância, esta ameaça ao pensamento faz parte do projeto de desdemocratização.

Ernesto Araújo, ministro do Exterior, afirmou na Câmara de Deputados que as teses sobre o aquecimento global eram ideológicas e que o aquecimento se devia apenas ao fato de os termômetros que medem a temperatura terem sido colocados, nos últimos tempos, muito perto do asfalto.  O ministro Osmar Terra, médico de profissão, disse que é ideológica a pesquisa da FIOCRUZ que afirma não haver uma epidemia das drogas no Brasil, pois não é o que ele vê nas ruas. Poderíamos apenas nos indignar e nos envergonhar com tanta ignorância, mas esses dois ministros sabem tão bem quanto qualquer um de nós, que estão dizendo grandes asneiras. Debocham da comunidade científica e enganam a população em geral, que tende a aceitar explicações simples.  Sempre foi importante, para projetos totalitários, calar, encarcerar, humilhar cientistas, intelectuais e artistas.

Se o projeto for vitorioso, teremos fortes razões para temer que a ameaça à manutenção das instituições  se concretizará, na medida em que elas podem representar  espaços de oposição as propostas do governo.  Também a universidade, a ciência e a cultura serão focos de perseguição. Para eles todo precisam ser calados. Assistiremos, ao mesmo tempo, ao encarceramento ainda mais massivo de jovens pobres, principalmente de homens negros e ao aumento da violência de toda ordem, legitimado pelo Ministério da Justiça. É importante nunca esquecer que, durante a ditadura civil-militar, o momento de maior radicalidade e brutalidade foi durante o governo do ditador Médici, quando os indicadores econômicos bombavam no país.

Se o projeto afundar, a fracasso será atribuído à Câmara de Deputados e ao  “comunismo”, ao “marxismo”,  a “ideologia”  presentes nas universidades, nos institutos de pesquisa, nas escolas, nas atividades culturais  e, novamente, o resultado seria um radical fechamento.

Apesar do aspecto de circo mambembe (com as devidas desculpas ao circo), o governo não é de amadores. Há um projeto em curso muito radical e assustador. Não tenhamos ilusão. Trata-se de uma catástrofe, nada menos do que isto.  Mas, como diria Michel Foucault, onde há poder, há resistência. E, digo eu, onde há resistência, há esperança.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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