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19 de abril de 2019
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11:39

Para além das firulas das altas cortes

Por
Sul 21
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Para além das firulas das altas cortes
Para além das firulas das altas cortes
(Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

Céli Pinto (*)

O Brasil nunca foi um país que primou por relações igualitárias. Historicamente a popular frase “sabe com quem estás falando?” tem definido com muita precisão o que uma vez chamei, em um livro meu, de “legítima hierarquia das desigualdades”. Há uma formidável ligeireza em defender direitos quando penso nos “meus” e a desqualificar ou deixar em segundo plano o direito “dos outros”. Isto não é apenas um pensamento restrito à extrema-direita ou ao conservadorismo em geral. Estamos cansados e cansadas de ver brancos dizendo que o movimento negro não faz sentido no Brasil, ou homens brancos dizendo que o feminismo divide a luta. Muitos homens brancos, de esquerda inclusive, se pensam representantes dos interesses universais e atribuem a qualquer luta que não seja exclusivamente deles como lutas por interesses específicos.

Portanto, o cenário é de legitimação de desigualdades. Isto chega a um perigoso limite quando se joga de forma pouco republicana com questões fundamentais do ordenamento de uma sociedade que pretende viver sob um estado democrático de direito. Estou me referindo especificamente à discussão sobre a liberdade de expressão, de imprensa e a posição do Supremo Tribunal Federal.

Parto do princípio de que a liberdade de expressão e a de imprensa, fundamentais na democracia, devem se fundar na liberdade de ter opinião, seja ela qual for, sobre qualquer assunto. Mas acusar alguém, denunciar, difamar, injuriar pelo simples exercício da política não configura liberdade de imprensa ou liberdade de expressão.

Se eu, como cidadã, sou sabedora de um crime, seja ele qual for, meu dever é denunciar aos órgãos competentes. Se eu tiver provas e acesso à mídia, posso publicizar estas provas. Dai que chamar alguém de estuprador não é uma opinião, nem chamar alguém de ladrão, ou afirmar que na Holanda os pais masturbam as crianças de 6 meses. São acusações sérias, que envolvem crimes e não podem ser feitas apenas para desqualificar inimigos nem por completa estultice. São acusações que necessitam ser provadas. Não é admissível, em um país que preserva regras mínimas de convívio democrático, se possa acusar quem quer que seja de qualquer coisa em nome da liberdade de expressão ou da liberdade de imprensa, sempre que isto for conveniente.

Neste país chamado Brasil, que legitima desigualdades de toda a ordem, a defesa da liberdade de expressão e de imprensa funciona de acordo com os interesses de quem tem o poder. Lula é proibido de dar entrevistas, Florestan Fernandes Junior tem uma entrevista pronta que não pode publicar. Não existe lei que proíba uma pessoa dar uma entrevista quando presa, mas ninguém levanta a causa da liberdade de expressão neste caso. Entretanto, dois sites de extrema direita que difamam ministros do Supremo Tribunal Federal devem ser respeitados. Podem dizer o que quiserem porque estão usando o “direto de difamar’? Em que Constituição, em que código está garantido este direito?

Este imbróglio tem ainda outro lado da moeda que também expressa a “legitima hierarquia das desigualdades”: a reação do Supremos Tribunal Federal. Ora, o STF, que tem por oficio defender a Constituição brasileira, a rasga porque se sente mais igual entre os desiguais. Deixa de ser uma corte constitucional para fazer o papel de uma corte de nobres que criam regras para si, desprezam qualquer lei ou regramento que não lhe convenha. Os ministros se auto definiram como investigadores, acusadores e juízes de um crime supostamente cometidos contra eles. Após reação de todos os lados voltam atrás e perdoam os “condenados”. Não é preciso ser um entendido em direito para perceber algo de muito errado neste quadro. Possivelmente os ministros do supremo acharam que a Procuradora Geral não daria guarida à acusação, porque há inúmeros problemas entre o Ministério público e o STF e ela estaria jogando suas últimas cartas com vistas à indicação do novo procurador geral em outubro vindouro. Isto pode até ser verdade, mas o principio da igualdade e da lei para todos não poderia ser prejudicado por interesses intestinos de membros da mais alta cúpula do judiciário e do Ministério Público.

Estamos em um momento particularmente grave para a democracia brasileira, que perde terreno desde 2016, acentuado com a eleição da extrema direita em 2018. A liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, as garantias dos direitos à educação, à saúde, à vida estão sendo diuturnamente ameaçados. Neste cenário, cada vez mais o falso discurso de defesa de direitos tem sido usado por minorias privilegiadas de forma deturpada, para defenderem interesses escusos. Urge que retomemos esta discussão de forma a construir um discurso democrático, que traga ao debate público a questão fundamental dos direitos que deve ir muito além das firulas das altas cortes do país.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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