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24 de março de 2019
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15:29

Ensaio de análise

Por
Sul 21
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Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Céli Pinto (*)

Um governo pode ser analisado por múltiplas entradas, mas há três que são particularmente importantes: a organicidade interna, a relação com o poder Legislativo e a relação com a sociedade. Ao examinar o governo Bolsonaro por esses vetores, o que se percebe é um cenário sombrio, para não dizer assustador.

O governo não consegue se apresentar minimamente como uma equipe. É um amontoado de pessoas batendo cabeças, sem liderança. Em termos regionais, Bolsonaro foi um político que sempre esteve muito perto da contravenção (mesmo que possa não ter participado diretamente dela). Nacionalmente frequentou, por 28 anos, os últimos bancos do baixo-clero da Câmara de Deputados. Sua popularidade foi construída a partir de esquisitices de extrema-direita. Em um cenário de ataque frontal ao sistema político partidário, perpetrado pelos arautos da Lava Jato, o parlapatão encontrou condições de emergência ótimas. Mas, mesmo ganhando as eleições e tendo oportunidade de se tornar líder de uma nova direita, não vem conseguindo se colocar no lugar que ganhou de bandeja. Até agora tem sido um não-presidente e parece que alguns membros do governo já se deram conta disto.

A fragilidade de Bolsonaro é tanta que seus filhos ganharam grande visibilidade e poder. Parece que ele só consegue entender questões simples do cotidiano do poder pelo desenho, fala primária e politicamente irresponsável dos filhos nas redes sociais. Não há novidade na atuação do clã e assim eles se fizeram na política, assim Bolsonaro chamou atenção para si como figura caricata na Câmara de Deputados. O que importa é que agora as travessuras do clã repercutem na vida e no futuro de 210 milhões de brasileiros.

Só que os problemas não param aí. Como governo, ou seja, como grupo no poder, o que se observa é a total falta de projeto comum, mesmo um projeto de extrema-direita. Os ditadores militares no Brasil das décadas de 1960/70 tiveram projetos muito bem definidos, que incluíram, em muitos momentos, a eliminação física de seus opositores. No governo Bolsonaro, o que se viu até agora foi, entre outras estultices, apenas o elogio do Ministro da Casa Civil a governos que promovem matança de seus opositores.

A falta de projeto não é uma característica de governos de extrema-direita. Ocorre que o governo Bolsonaro é um desgoverno de extrema-direita, que não alinhavou um projeto, mesmo que fosse apenas para constar, durante a campanha eleitoral. Ao chegar ao governo, montou uma equipe sem um único ministro sobre o qual se possa dizer: “é um indivíduo de extrema-direita, vai vender o Brasil, mas é pessoa politicamente relevante, academicamente qualificada, experiente”. Ao contrário, a equipe é um amontoado de pessoas sem eiras nem beiras. É possível identificar três grupos e alguns penduricalhos. Os grupos são: militares, representantes dos interesses do capitalismo internacional e ideólogos. A questão que parece central é que todos têm uma única característica comum: um grande senso de oportunidade, para não dizer, puro oportunismo.

A pergunta sobre o que os militares estão querendo dentro deste governo não é difícil de responder. Nada indica que tenham um projeto para o Brasil, ou mesmo um projeto de governo a longo prazo. Afastados das arenas do poder desde a redemocratização na década de 1980, associados à ditadura, com pouca voz para reivindicar tanto salários como rearmamento, os militares adquiriram novo espaço com a chefia da missão da ONU no Haiti. Daí ao apoio a Bolsonaro foi uma via em linha reta.

Como sabemos, Bolsonaro sempre foi visto como carta fora do baralho pelos militares, uma ovelha negra na carreira, que se reformou como capitão por razões das mais escusas. Mesmo assim, as Forças Armadas viram, na fragilidade do presidente e na sua necessidade de ter um grupo para chamar de seu, a oportunidade para se colocarem na linha de frente novamente. Os militares parecem ter – além de um palco de extrema-direita para exercerem sua visão política autoritária, tão menosprezada por décadas -, uma garantia de que seus interesses corporativos voltarão a ter o protagonismo que haviam perdido nos governos de FHC de Lula e de Dilma.

O segundo grupo é formado por aqueles ligados à política econômica (o superministério da economia, Banco Central, BNDES) e possui um projeto próprio, neoliberal ao extremo, articulado aos interesses do capital internacional e calcado em dois pilares: a reforma da previdência e a privatização do maior número possível de ativos públicos. Para este grupo, o governo Bolsonaro é um espaço particularmente propício para albergar seus interesses. Lembremos que, quando ainda candidato, antes da providencial facada que o liberou de qualquer compromisso público, Bolsonaro sempre pareceu acuado quando tinha de responder perguntas sobre seu pretenso governo e aludia a figura de Paulo Guedes como seu guru. No dia 16 de outubro de 2018, entre o 1º e ou 2º turno, Bolsonaro afirmou, em uma entrevista ao SBT, sobre seu futuro ministro da economia Paulo Guedes: “Eu levo sugestões e ele decide”.

O terceiro grupo é dos ideólogos, formado por três ministros: Ricardo Velez, Damares Alves e Ernesto Araújo, e tem como liderança “intelectual” a esdrúxula figura de Olavo de Carvalho. Este grupo é o que deixa mais escancarada a face da aventura fascistóide que constitui este governo. Enganam-se aqueles que pensam que os três estão em seus referidos postos como cortina de fumaça para que o governo faça o que realmente lhe interessa. Isto é falso por duas razões: primeiro porque é um complô sofisticado demais para os ocupantes do Planalto, e segundo porque os três indivíduos constituem a parte mais aproximada do que se poderia chamar de um projeto que dá sustentação aos dois outros grupos. Os três ministros dividem a característica de terem sido guindados aos cargos a partir do submundo de suas respectivas atividades profissionais. Nenhum deles, certamente, sonhou, mesmo em suas mais enlouquecidas fantasias, ser ministro. Este grupo é a cara da reação de extrema-direita às conquistas do país em três áreas fundamentais: a educação, a política externa e os direitos humanos, especificamente os diretos das mulheres. Desestruturar, criminalizar, caricaturar são ações que fazem sentido em um desgoverno. Talvez aqui esteja o único espaço de construção ideológica do chamado bolsonarismo.

É possível que, quando este texto for publicado, Velez não seja mais Ministro da Educação, mas certamente será substituído por outro que tenha mais habilidade para fazer o desmonte da educação.

Afora estes três grandes grupos, há outros dois ministros com projeção e com projetos absolutamente pessoais: Sergio Moro e Onix Lorenzoni dividem o deslumbramento com o lugar em que estão e que também não sonhavam chegar. Moro sonha com o STF e aguentará calado qualquer humilhação; Lorenzoni tem uma alegria infantil no rosto, ele que por décadas foi um deputado sem luzes, um backbencher, mesmo entre os seus pares do DEM.

Se os problemas do governo parassem aí já seria um descalabro, mas vão muito além. A relação do poder Executivo com o Legislativo é um grande complicador. Por um lado, Bolsonaro foi um deputado sem nenhuma liderança, uma caricatura. Nunca teve destaque, mudou múltiplas vezes de partido e chegou ao precário PSL para conseguir espaço como candidato à presidência da república. Talvez possamos atribuir um mérito ao capitão, que reconheceu sua fragilidade e a fragilidade de políticos tipo Lorenzoni, que o cercam, e partiu para um discurso que enfatiza que não irá conversar com partidos, mas com bancadas, leia-se bancadas da bala, da bíblia e do boi.

Bolsonaro, apesar de ter estado por 28 anos na Câmara de Deputados, não entendeu a dinâmica do funcionamento da casa, que é organizada a partir de bancadas partidárias. A partir delas se organizam as demandas e os interesses regionais e de bancadas específicas. Assim funciona o Congresso Nacional, assim suas duas casas são organizadas a partir de seus poderosos regimentos internos. É difícil imaginar, por exemplo, todas as igrejas pentecostais convivendo em harmonia e que deputados por elas apoiados se comportem como uma frente única. Quem estuda o mercado religioso brasileiro sabe que a convivência das Igrejas entre si é bastante complexa e tensa.

Mas os problemas da relação entre Executivo e Legislativo também não param por aí. A Lava Jato e seu furor condenatório destruiu o sistema político partidário brasileiro. O que sobrou de mais consistente foi o PT, por um lado, e o DEM por outro. Os dois grandes partidos de centro, o MDB e PSDB, sofreram enorme desgaste. À esquerda, o PT saiu ferido da contenda, mas com força para ter, pelo menos no momento pós eleitoral, a maior bancada da Câmara de Deputados que se soma, como oposição ideológica, aos eleitos de PSOL, PDT e PSB. A direita herdou grande parte dos votos dos dois grandes do centro. Afora os votos tradicionais do DEM, os demais se concentraram no partido de Bolsonaro e em um número quase absurdo de pequenos partidos. Tanto o PSL como as vinte e tantas outras agremiações da direita dividem a mesma característica: são partidos de ocasião, seus deputados não têm relações orgânicas entre si. É provável que alguns não consigam nem mesmo decifrar a sopa de letrinhas das siglas dos partidos pelos quais foram eleitos.

Para complicar mais ainda o jogo político, o Legislativo teve uma grande renovação e, contrariando o que o senso comum apressado acredita, não é obrigatoriamente algo positivo. Tirar da política profissionais experientes, com vidas políticas longas, e substitui-los por artista de filmes pornográficos, pastores de ocasião, militares e policiais de baixa patente reformados não colabora em nada para o aprimoramento do poder legislativo. Talvez a única notícia boa que este exército de Brancaleone pode nos dar é que o governo Bolsonaro vai ter muita dificuldade em aprovar qualquer de seus projetos desestruturantes, a começar pela reforma da Previdência.

Existe ainda o eleitorado de Bolsonaro, que seria uma base de apoio para o enfrentamento de seus ministros e o Legislativo, composto de dois grandes grupos: uma população desiludida e um grupo de fanáticos de direita. O comportamento da população desiludida pode ser apreciado no resultado da pesquisa do IBOPE de março sobre a popularidade do presidente: a mais baixa entre os presidentes, em primeiro mandato, na comparação com FCH, Lula e Dilma. Estes são eleitores de diferentes classes sociais que votaram em Bolsonaro porque eram anti-PT, porque estavam desiludidos com o PT, viam a segurança como o grande problema do país ou estavam desempregados. Desses eleitores, poucos votaram em Bolsonaro porque viam nele qualidades de estadista ou de político experiente. Bolsonaro foi apenas o resultado da grande campanha midiática da Lava Jato, que desqualificava os políticos e o sistema partidário. Moro não é Ministro e candidato ao STF por acaso.

Este eleitorado de ocasião não tem nenhuma razão para ser fiel. Como comprou uma ilusão e tem uma relação simplista com a política, vai se desiludir facilmente. Parece até que, pelos resultados do IBOPE, já está desiludido. As frações de trabalhadores e de pessoas de baixa classe média que entraram nesta ventura serão as primeiras a se colocarem frontalmente contra, quando o texto da Reforma da Previdência começar a ganhar mais forma. A classe média, quando frustrar seu sonho de voltar a Miami, também abandonará o barco. Bolsonaro devia saber que este grupo já votou no PT, já adorou Aécio Neves e abandonou todos eles.

Restam os eleitores fanáticos, a extrema direta belicosa, armamentista, que se somam aos eleitores minoritários mas poderosos, ligados ao chamado mercado. Os primeiros tenderão a se radicalizar cada vez mais, a cerrar fileira em torno do clã Bolsonaro e seus radicalismos efervescentes. É um grupo perigoso, que ameaça a convivência social e usa as redes sociais para suas ideias, pouco afeitos aos princípios básicos da democracia e da sociabilidade. O problema para o clã Bolsonaro é que, por mais à vontade que se sintam em meio a este eleitorado, não tem condições de segurar o governo. Até mesmo o General vice-presidente se esforça para se diferenciar do clã e seus asseclas.

Resta o mercado. Ora, o mercado e seus eleitores privilegiados são exclusivamente interessados em seus ganhos, sejam representados pelos interesses da burguesia nacional ou internacional. O mercado se deu muito bem com FHC e com Lula. Tiraram o tapete de Dilma não por ideologia ou preocupação com a corrupção, mas porque seus interesses não estavam sendo mais atendidos, até por conta da crise econômica. Necessitava de um governo menos afeito a preocupações de ordem social, e Bolsonaro era um artigo barato de comprar.

Engana-se o governo Bolsonaro achando que, ao fazer o papel de república das bananas das chanchadas da década de 1950 nos Estados Unidos, vai garantir apoio incondicional do mercado nacional e internacional. O capitalismo não tem pátria, partido ou mesmo regime político.

***

Para concluir este ensaio inicial de análise, vale dizer que estamos frente a um governo com três meses de existência, mas que parece estar em seus últimos momentos. O que acontecerá daqui para frente parece que dependerá muito de um conjunto de atores.

O primeiro deles é representado pelos setores independentes no aparato estatal, funcionários públicos de carreira, nos ministérios da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Saúde entre outros. Destes grupos poderá vir uma reação forte aos desmandos, e à desqualificação dos serviços. Nas últimas décadas se constituiu um corpo de funcionários públicos qualificados que foram protagonistas na execução de políticas publicas estruturantes, na área da educação, na área social, na área da saúde.

O segundo grupo poderá decorrer da mobilização da sociedade civil, dos movimentos sociais, desde os sindicatos, MTST, MST até os movimentos feministas, LGBTI, movimentos negros, entre outros. O “elenão”, organizado pelos movimentos feministas e de mulheres em geral, mostrou não apenas a força das mulheres, mas a capacidade de articular diferentes atores e demandas na sociedade.

Finalmente o terceiro grupo de atores diz respeito à política stricto sensu e depende muito diretamente da capacidade dos partidos políticos de esquerda e centro esquerda compreenderem a gravidade do momento e se organizarem em uma grande frente de oposição ao governo, capaz de articular diferentes posicionalidades. Os partidos necessitam rearticular as demandas dos eleitores desiludidos e cerrar fileiras com os movimentos sociais sem pretenderem ser porta vozes privilegiados das demandas destes.

Se nada acontecer, o Brasil pode se arrastar pelos próximos quatro anos com este governo disforme calcado em grupos extremistas e violentos. Possivelmente, decorrido esse prazo, restará muito pouco da engenharia política que sustentou o processo de democratização no Brasil a partir da Constituição de 1988. Apesar de seus muitos tropeços, apesar de seus grandes limites, teremos muito a lamentar com a derrota da experiência democrática.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


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