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23 de novembro de 2018
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19:54

O Governo da Ordem

Por
Sul 21
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O Governo da Ordem
O Governo da Ordem
“Uma característica comum a todos os estratos da classe média é a busca pela ordem”. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Céli Pinto (*)

Nada há para se espantar sobre as indicações para os ministérios de Bolsonaro. Tudo era mais do que esperado.  Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes, Ernesto Araújo e Ricardo Velez Rodrigues formam um quarteto absolutamente razoável dentro de uma proposta de extrema-direita embasada em um fundamentalismo religioso ignorante e obscurantista.  Estranho seria se um governo, assessorado por Olavo de Carvalho, Pastor Malafaia e Magno Malta, tomasse outro rumo.

E os 56 milhões de eleitores de Bolsonaro, o que pensam disto?  Pouca coisa, certamente.  Este eleitorado é muito variado e é arriscado fazer análises apressadas sobre suas características, mas é possível identificar dois grandes grupos de pessoas que formam a massa dos eleitores do capitão reformado, ambos pertencentes ao que,  lato sensu, é chamado de classe média: a alta, média e baixa.

Uma característica comum a todos os estratos da classe média é a busca pela ordem. Nos últimos anos foi construído, cuidadosamente, o discurso do caos, a partir da dobradinha falta de segurança pública-corrupção dos agentes do Estado. Além de ameaçada de morte sempre que saísse à rua, a população também estaria sendo prejudicada porque o Brasil não crescia devido à corrupção. Duas falácias, mas ao gosto das forças reacionárias e da grande mídia.

Não há dúvida de que existe um grave problema de segurança pública no país, mas ele está longe de ameaçar a vida da classe média como a propaganda reacionária quer fazer crer. O problema se expressa na incapacidade do Estado de governar sobre todo o seu território, deixando populações pobres à mercê de milícias e organizações que comandam o tráfico de drogas e armas no país. Também se verifica nas condições medievais das prisões brasileiras, no encarceramento desmedido, no assassinato de homens jovens negros e de mulheres, estas últimas como efeito de uma sociedade machista e misógina. Morreram e morrerão senhores que andam de bicicleta na zona sul do Rio de Janeiro e mães que estão esperando filhos nas portas dos colégios. Estas mortes são tão dignas de luto como as outras, mas são mais raras e as únicas que são vividas como inaceitáveis pelos setores privilegiados da sociedade brasileira.

Também é óbvio que o país sofre de uma corrupção endêmica que deve ser combatida, mas há dois pontos centrais que necessitam ficar claros em relação à existência e ao combate. Primeiramente, não há relação direta entre corrupção e crise do capitalismo brasileiro.  O montante da corrupção, por mais que possa parecer imenso frente à maioria dos salários do povo, não é suficiente para resolver nenhum dos problemas do país. Nem mesmo a diminuição do lucro da Petrobras pode ser atribuída à corrupção. Esta é uma relação simplista que cai muito bem no discurso de uma mídia mal-intencionada e de uma população pouco afeita ao debate democrático.

O segundo ponto a ser esclarecido é a forma como ocorre o combate à corrupção no Brasil. Historicamente, a corrupção tem sido o bode expiatório de partidos e grupos de direita para conseguir apoio das camadas médias da sociedade. Foi assim já na crise que levou ao suicídio de Getúlio, em 1954. Isto fez, nos últimos anos, que o combate à corrupção se tornasse um espetáculo pirotécnico liderado por um juiz de primeira instância encantado com as luzes, que no final foi agraciado com o Ministério da Justiça no governo de extrema-direita. O combate à corrupção mandou para a cadeia  empresários e políticos de muitos partidos, mas não de todos. O discutível instituto da delação premiada transformou penas de 20 anos em 2 anos. Havia ainda um combate central que não era contra a corrupção, mas contra o PT, mais precisamente contra Lula. Era preciso, a qualquer custo, afastar o ex-presidente das eleições de 2018. As forças conservadoras não haviam deposto Dilma em 2016 para entregar o governo ao PT pelo voto depois de dois anos.

Lula era uma ameaça à ordem. Os governos petistas já haviam perturbado a ordem da sociedade brasileira ao mexer, mesmo que muito timidamente, na trágica condição da grande maioria do povo.  A classe média (alta e média) não se conformava com ter de pagar direitos trabalhistas às empregadas domésticas, ou dividir as universidades públicas com a população negra. A ideia de que tinham pago colégios caros para os filhos e por isto tinham direto a todas as vagas nas universidades era repetida pelos chamados cidadãos “de bem” sem nenhuma preocupação ética.

O mais estranho em tudo isto não é que a classe média alta e média se sentisse ameaçada em seus privilégios de herdeiras do escravismo, o mais surpreendente foi que uma chamada nova classe média (a  classe C), exatamente a que assustava os setores tradicionais, também se sentia ameaçada. A nova classe média queria desesperadamente entrar para um clube em que não era aceita e, neste esforço, adotou os valores e a postura ideológica de seus algozes.

Esta chamada classe C surgiu como consequência direta das políticas públicas dos governos petistas, que aumentou o valor real do salário mínimo, ampliou as vagas nas universidades, criou políticas de cota, construiu habitações a baixo preço através do programa “Minha Casa Minha Vida”, melhorou o atendimento à saúde através do programa “Mais Médicos”.

Mas estas políticas surtiram efeitos perversos, que atingiram o próprio governo petista.  O mais forte deles diz respeito à forma como as pessoas vivenciaram as melhorias em suas vidas: quem trabalhou 20 anos em serviços pesados para conquistar a casa própria, evidentemente, atribui a seus méritos esta compra. E está certa, pois fez sacrifícios e finalmente conquistou um sonho. Entretanto, o que parece ter sido esquecido pelos novos proprietários é que gerações e gerações antes deles também trabalharam muito duro e, muitas vezes, não conseguiam sequer alimentar seus próprios filhos uma vez ao dia. Não ficou entendido que, ao árduo trabalho, somaram-se políticas públicas que possibilitaram o novo patamar em suas vidas, o que foi definitivo no deslocamento ideológico de vastas camadas da população.

Esta nova classe média caminhou em direção à velha, aquela que não lhe aceita. A diminuição de sua capacidade de consumo, o desemprego ou a ameaça de perder a nova forma de vida foi associada imediatamente ao caos e, principalmente, à corrupção do PT e a uma suposta traição de Lula.  Para estes setores, faz muito mais efeito a acusação de ser proprietário de um apartamento triplex, mesmo que sem nenhuma prova, do que ter 100 milhões de dólares em um banco suíço ou ser proprietário de um helicóptero apreendido com 500 quilos de cocaína. As forças que pretensamente combatem a corrupção com espetáculos de powerpoint, prisões e delações premiadas sabem muito bem disto.

Soma-se a este quadro o fato de que a classe média baixa é a que usa mais o transporte público, que vive em bairros populares, que se sente ainda mais ameaçada pela crise na segurança pública. Seus filhos, muitas vezes negros, são os mais prováveis de aparecerem nas estatísticas dos mortos não chorados.

Em síntese, de 2014 a 2018, o discurso da ordem contra a corrupção e a insegurança pública foi se radicalizando. Esta massa disforme chamada classe média, com seus diferentes e contraditórios  matizes internos, foi se amalgamando e  a parcela que era  o motivo de desprezo dos setores tradicionais foi  fundamental para eleger um governo excludente, que não mostra nenhuma preocupação com a questão social, é obscurantista em termos de educação e cultura, mas promete a ordem, expõe militares na TV todos os dias, se apoia nas armas e na bíblia.

A ordem virá, mas contra a grande maioria dos que votaram no governo.  E quando o governo obscurantista de extrema-direita perder o encanto, talvez seja tarde demais para estes setores significativos de eleitores do capitão.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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