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7 de setembro de 2018
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15:07

Violência

Por
Sul 21
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Violência
Violência
“Estamos muito próximos da fascistização da sociedade”. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

Céli Pinto (*)

Cena corriqueira nos noticiários de TV: em um cemitério pobre na periferia do Rio de Janeiro acontece um velório. O corpo é de um homem jovem, muito jovem, negro, morto com uma bala nas costas, em um conflito entre a polícia e traficantes, em uma das favelas da cidade. O repórter entrevista a mãe, uma senhora desesperada em sua justa dor. E esta senhora diz: “eu quero justiça, meu filho era um menino trabalhador, nunca tinha se envolvido com drogas, não tinha passagem pela polícia, não poderia ter sido morto assim”.

A fala desta senhora movida por pura emoção é muito explicativa do que é o Brasil hoje. O que ela revela é uma certa prestação de contas à sociedade. Esta senhora em sua dor, por ser pobre, por ser negra, por ter um filho morto necessita se justificar para não ser suspeita, para reivindicar justiça por uma morte injusta. Para que a sociedade se solidarize com sua dor é preciso provar que seu filho tinha o direto de estar vivo.

Hannah Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém” (São Paulo: Cia das Letras,1999) aponta que o grande crime dos nazistas é que eles achavam que tinham o direito de escolher quem deveria ficar vivo e quem deveria morrer no planeta. E Arendt argumenta que isto é o mal do nazismo e dos totalitarismos, onde os governantes decidem quem deve viver e quem deve morrer. Isto é a negação da democracia

No Brasil, não estamos vivendo uma experiência fascista, mas estamos muito próximos da fascistização da sociedade e de parcelas que a ela pretendem representar. A mãe de exemplo acima sente no dia a dia de sua vida, que escolha está sempre presente e ameaça seus filhos.

É disto que se trata a violência, a morte, os escolhidos para morrer são naturalizados: os jovens homens negros, das mulheres vítimas de feminicídio, os mortos nos crimes de trânsito, os mortos em conflito entre a polícia e traficantes. Quando matar se torna um forma de expressão, quando o armamento da população é construído como um direto de defesa, quando mortes, efeitos de atos de agentes governamentais, não necessitam ser investigadas porque legitimadas em princípio, os atentados encontram condições particularmente favoráveis para acontecer. Ou porque o político incomoda ou porque se odeia políticos em geral ou simplesmente porque se é um desequilibrado mental , matar parece estar no universo de possibilidades dos agentes da lei e da população. Isto é de uma tragicidade muito pouco avaliada atualmente.

Por outro lado, enganam-se os que pensam que o forte embate político das democracias leva à violência, que posições de direita, de esquerda e de centro são malévolas para o país. Os discursos do consenso para afastar a violência é falso e perigoso, porque cala os mais fracos, cala os que denunciam, cala os que estão mais expostos às mortes violentas. As democracias se fortalecem por embates, por posições antagônicas, por muitas vezes construir o “nós’ e os “eles”. Não há nenhum problema nisto. Não há nenhum ódio necessário neste embate.

Em momentos críticos como este que estamos vivendo, não podemos transformar o repúdio pelo ato de violência sofrido pelo candidato à presidência em um abre alas para discursos e práticas que incitem a violência e o armamento no país. Nem apregoar a cínica ideia que todos temos de nos dar as mãos para construir o país de irmãos na dor. Continuar lutando pela democracia é definitivamente abrir mão de se sentir no direto de decidir quem deve viver e quem deve morrer. É ir para o embate de posições políticas, de projetos alternativos, muitas vezes um negando o outro. Aí está o que de mais saudável tem o regime democrático. O resto é tentar apagar o sol com a peneira.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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