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9 de julho de 2018
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18:25

Apenas um ensaio geral

Por
Sul 21
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Apenas um ensaio geral
Apenas um ensaio geral
“Enquanto cuidávamos do Exército, quem agia era a Polícia Federal”.  (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Céli Pinto (*)

Os acontecimentos do último domingo, dia 8 de julho, são daqueles que constarão em todas as cronologias que  buscarem explicar a crise político-institucional em que o Brasil está imerso e que se concretiza em um despudorado desrespeito a princípios democráticos básicos. Não sou jurista, não sou advogada, não tenho graduação em Direito, mas o que aconteceu neste domingo no Brasil foi tão absolutamente óbvio que não carece de tantos saberes.

Parece-me  bastante razoável que advogados conheçam os juízes e desembargadores, suas linhas jurídicas e mesmo ideológicas e que se valham deste conhecimento para impetrar ações a favor de seus clientes.

Nos últimos anos, toda a mídia sempre caracterizou lados no Supremo Tribunal Federal. Se a mídia não o fizesse, os próprios  ministros do STF o fazem: Gilmar Mendes, por exemplo, ao criticar a desinstitucionalização que, segundo ele, acontece no Brasil afirmou: “O único consolo que eu tenho é que é o PT quem está sofrendo com essa desinstitucionalização” ( Folha de São Paulo, 6 de abril de 2018).  Isto não o desqualificou como um dos magistrados da Suprema Corte.

Todos sabem também, principalmente a grande mídia, que Alexandre de Moraes, foi secretário de segurança de Alckmin no governo de São Paulo e Ministro da Justiça de Temer. Foi filiado ao PSDB, partido do qual pediu desligamento no dia 7 de fevereiro de 2017, para assumir o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Ontem, no fim da tarde, uma advogada em entrevista à Bandnews bradava que não se podia admitir mais “este tipo de gente”, referindo-se ao desembargador Favreto, em altos cargos na Justiça. Nada contra a advogada, ela pode ter a opinião que quiser, mas uma jornalista não poderia deixar  de pontuar que isto é  uma prática no Brasil (e nas  respeitadas democracias do mundo também). Não foi o que aconteceu, ela concordou com a entrevistada, como se ela estivesse revelando um crime hediondo. Em grande parte da mídia televisiva, o fato de Favreto ter sido ligado ao PT foi um mote para sua desqualificação.  Esqueceram-se os jornalistas de que, em um país democrático, cidadãos e cidadãs têm direitos, garantidos na Constituição Federal, de serem filiados a um partido. Em algumas circunstâncias, para assumirem cargos públicos, precisam se desfiliar.  Nas grandes redes de televisão, ter pertencido ao PT é crime.

Portanto, o fato de políticos e/ou advogados impetrarem um pedido de habeas corpus num dia em que o desembargador de plantão  fosse, pelo menos teoricamente, um jurista com mais possibilidade de acatar a demanda, não fere nenhum princípio democrático, nem ético, nem político.

O que feriu o principio da ordenação jurídica da democracia foi a decisão dos donos do poder (político e mediático), não explicitada, mas óbvia, pelos fatos que se sucederam: custasse o que custasse, a ordem do desembargador Favreto não poderia ser cumprida.

O primeiro acionado foi Sergio Moro, de férias em Portugal. Não sejamos ingênuos, Moro não se manifestou por decisão própria contra um desembargador, ele  é apenas um empertigado juiz de província. Sua entrada foi arquitetada. Com seu jeito de  celebridade brega de reality show, ele tem uma imensa popularidade entre  amplos setores das classes médias, além de setores populares não politizados.

Novamente, nenhum jornalista das grandes redes estranhou que um juiz declarasse oficialmente que um desembargador não tem competência para exaurir um ato jurídico.  A palavra  do juiz da província tornou-se o texto autorizado para falar do despacho do desembargador.  Mas, apesar disto, teria de haver um outro elemento para garantir a manutenção de Lula na prisão: o descumprimento da ordem de soltura pela Polícia Federal. Isto aconteceu em três momentos, nas três vezes em que o desembargador emitiu  ordens de soltura.

Um país em que um juiz de província desautoriza um desembargador e todos aplaudem e que a Polícia Federal, um dos braços armados do Estado – e isto não é pouca coisa – desobedece uma ordem judicial, sem ao menos justificar, não é um país que tem sua democracia ameaçada, é um país que não tem mais resquícios de um estado democrático de direito.  Não está nas mãos  dos militares, nem sequer de um partido totalitário ou autoritário, está nas mãos de uma gang, que se aproveita de forma irônica da própria desqualificação da política para  agir como gang, como fez neste domingo.

O trágico é que a política se desmoraliza e a gang no poder se vale desta  desmoralização  para se manter no poder.

Em três meses teremos eleições gerais. O  que aconteceu ontem tem muito a nos dizer sobre os próximos meses. Sem ordenamento jurídico, se a gang se sentir ameaçada e continuar com os apoios que mostrou ter dentro do aparato estatal, as eleições poderão não acontecer; se acontecerem e houver vitórias significativas  das forças de oposição, os juízes de província, a grande parte da mídia e até as forças policiais estarão à disposição para intervir.

Enquanto cuidávamos do Exército, quem agia era a Polícia Federal.  Ontem foi apenas um ensaio geral.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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