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17 de junho de 2018
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14:47

E, como diria Quincas Borba, “aos vencedores, as batatas”

Por
Sul 21
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E, como diria Quincas Borba, “aos vencedores, as batatas”
E, como diria Quincas Borba, “aos vencedores, as batatas”
“O discurso político da extrema-direita brasileira é uma grande novidade”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Céli Pinto (*)

O regime democrático no Brasil que se instaura pós ditadura militar inaugurou um período relativamente longo, para os padrões do país, de estabilidade política.

Após o conturbado período inicial com a morte do presidente eleito indiretamente Tancredo Neves e os anos de governo de Collor de Mello e seu vive Itamar Franco, os governos Fernando Henrique e Lula pareciam ter estabelecido um padrão de democracia com dois grandes partidos com possibilidades reais de chegarem a presidência da república: o PSDB, que se dizia social democrata, era claramente liberal, e o PT que se dizia socialista era claramente social democrata. À direita do PSDB e à esquerda do PT apareciam partidos menores que formavam o grupo de apoiadores de um ou de outro. Juntava-se a este quadro, o PMDB, um partido, poderoso pelo seu tamanho e sua capacidade de ocupar espaços, com grande penetração no interior do Brasil, sem lideranças suficientemente fortes para disputarem a presidência da República, mas com elites oligárquicas sempre dispostas a participar do governo, quer do PSDB, quer do PT em troca de cargos e favorecimentos de toda a ordem.

A crise da democracia brasileira, aqui identificada como tendo seu começo ainda antes da não aceitação do resultado eleitoral de 2014 pelo candidato derrotado, nas Jornadas de 2013, pode ser explicada a partir de variadas entradas, não é efeito de uma só causa. É possível afirmar que suas bases encontram-se em duas circunstâncias bem marcadas: 1. A desconstrução do que se poderia chamar de um povo petista ao longo dos governos do partido; 2. A derrota do PSDB nas eleições presidenciais de 2014 e a construção de um discurso de deslegitimação da presidenta eleita.

Ao longo dos governos Lula e mesmo no primeiro mandato de Dilma Rousseff, houve uma política redistributiva constante no país, ainda que tímida, que elevou o consumo individual, por conta de um quase pleno emprego, do aumento real do salário mínimo e de políticas de crédito com juros baixos. Através de políticas sociais, uma parcela importante do país foi tirada da miséria absoluta. Na educação houve um aumentou significativo das vagas no ensino superior possibilitando a entrada de setores da baixa classe média e mesmo das camadas populares na universidade. Programas como “Minha Casa Minha Vida” e “Mais Médicos” possibilitaram acesso à casa própria e uma maior possibilidade de atendimento a saúde.

Este quadro virtuoso foi, entretanto, acompanhado por uma segunda circunstância, a crise política de 2005 ocorrida devido fortes acusações de corrupção, conhecida como mensalão, que envolveu praticamente todos os partidos do governo e fora dele, mas que tive efeitos distintos nos diferentes partidos por duas básicas razões, recaindo o maior peso no PT: A primeira refere-se ao fato do PT desde sua fundação ter se apresentado como um partido ético antagonicamente proposto às classes dominantes corruptas; a segunda, a condição de partido de governo, que lhe deu o protagonismo de articulador do chamado mensalão mesmo dividindo o poder com o PMDB e outros partidos menores.

Apesar de parecer contraditório, estas duas circunstâncias formaram o caldo de cultura para a desconstrução do povo, que dava embasamento ao governo do PT.

Muito tem se apontado para o fato do PT no governo ter se afastado dos movimentos sociais e ter perdido apoio popular, “seu povo”. Isto é em boa medida verdade, mas há um outro fenômeno, que deve ser pontuado que é a ascensão de vastas camadas da população à condição de consumidores de bens duráveis, que foram chamados inclusive de uma nova classe média, a classe C. Estes grupos, que consumem eletrodomésticos, viagens de lazer, compram seu primeiro carro, conseguem financiamento para casa própria, tendem a atribuir esta nova condição a seu esforço pessoal e ao trabalho de uma vida. Havendo aí um deslocamento discursivo importante: deixam de ser os trabalhadores excluídos, o povo do discurso do PT, para serem os indivíduos portadores de bens e de direitos. Este processo foi muito forte e pouco percebido pelo partido no poder. Não há dúvidas que individualmente as pessoas adquirem bens pelo esforço e trabalho muitas vezes de uma vida e sentem-se pessoalmente orgulhosas e recompensadas. O problema não está aí, mas sim no não reconhecimento que sem as políticas governamentais que aconteceram no período, os esforços pessoais não teriam tido recompensas. O sujeito político trabalhador excluído das possibilidades de acesso a bens e serviços se transforma em sujeitos individuais vencedores.

As Jornadas de 2013 têm dito interpretações muito diversas, mas parece bastante evidente que parte significativa das pessoas que estavam lá, haviam migrado do PT, ou seja, deixaram de ser sujeitos petistas, para se tornarem sujeitos de um discurso anti política, que recorrentemente interpela as camadas médias brasileiras. Na medida em que os ganhos passam a ser cada vez mais atribuídos à meritocracia (discursos fortemente influenciado pela mídia) e cada vez menos às políticas sociais do governo, o tema da corrupção ganha relevo e é um elemento importante na desconstrução do povo petista. Portanto, os méritos e os problemas dos governos do PT foram igualmente responsáveis pela desconstrução do discurso.

O sujeito das manifestações eram indivíduos que a elas chegaram por mobilização das redes sociais e lá estavam em pequenos grupos com cartazes feitos à mão expressando um conjunto disperso de demandas. Cada cartaz era o exemplo vivo da dispersão. Mas havia neste mundo desarticulado, dois inimigos, a política enquanto tal e o governo, que em um momento posterior vão se articular no discurso pró impeachment. Os significantes anti política estavam em cartazes que diziam “Direita? Esquerda? eu quero ir pra frente”; o povo unido não precisa de partido”; “sem partido, fora militante; eles não nos representam”. Mas havia cartazes que se dirigiam ao PT contra o governo: “Lula ladrão”; “Chega de Corrupção” ”ou para a roubalheira ou paramos o Brasil”; “queremos escolas, hospitais no padrão Fifa.”.

Estas manifestações anti política e anti governo se articularam em um discurso anti Dilma que já se expressou claramente pela primeira vez na Cerimônia de Abertura da Copa do Mundo de Futebol em 2014. Mesmo com a reeleição de Dilma na presidência da República em outubro deste mesmo ano, o discurso político que tinha articulado a prática política do PT, ao longo de toda sua história e mais fortemente nos mandatos presidenciais de Lula, não existia mais.

Talvez o fato mais surpreendente deste redimensionamento do povo, agora contra o PT foi o revival do anticomunismo. Em 1964 o golpe de estado militar se valeu deste mítico medo ao comunismo para levar pessoas para as ruas e conseguir apoio das camadas médias habitantes das cidades. O Brasil daquela época estava tão longe de se tornar um país comunista como em 2014, mas diferente deste último momento, havia a guerra fria, a União Soviética era uma grande potência mundial e a esquerda brasileira defendia o comunismo abertamente. A campanha de Aécio Neves articulou novamente o comunismo e o associou ao sucesso a Dilma e ao PT. Em uma passeata de apoio ao candidato do PSDB em São Paulo se ouviu repetidamente gritos anti comunistas.

Porquê o comunismo teria voltado como o inimigo a derrotar, em um momento em que as experiências com o regime havia sido derrotadas na Europa e nenhuma manifestação de esquerda no Brasil se identificava com as teses comunistas? O PT fazia um governo de centro-esquerda bastante moderado e nunca havia se declarado comunista. A resposta a esta questão deve observar pelo menos três aspectos. O primeiro refere-se ao fato do significante comunismo ter tido uma longa duração no discurso político conservador brasileiro, muitas vezes liderado pela Igreja Católica, como elemento capaz de conter todas as manifestações consideradas de esquerda. Também as manifestações dos militares no Brasil , pós Segunda Guerra, muito influenciados pela guerra fria e pela adesão às escolas militares estadunidenses, sempre tiveram o mito do perigo do comunismo como base para justificar suas opiniões e ações políticas. Nas décadas de 1950 e 1960 Leonel Brizola, um político trabalhista, social-democrata no limite, sempre foi significado como um perigo comunista.

O segundo aspecto da popularidade do comunismo como o inimigo a ser derrotado refere-se ao reaparecimento no país de manifestações políticas de direita e extrema-direita, principalmente nas manifestações de rua. Por conta da ditadura militar que vigorou no país por mais de 20 anos não tinha havido espaço discursivo para um pensamento de direita. Os partidos posicionados mais à direita no espectro político sempre se auto identificavam como de centro. Com a hegemonia do PT no poder e o afastamento no tempo do regime militar começa a se constituir condições de emergência para as posturas de direita, que também foi muito de perto condicionada pelo sentimento de perda de privilégio de setores de classe média, com as políticas sociais dos governos petistas como, por exemplo, a política de cotas raciais nas universidades.

O terceiro aspecto que deve ser considerado para se entender esta nova onda anticomunista deslocada no tempo foi a política dos “mais médicos” implantada no Serviço Único de Saúde (SUS), que trouxe médicos cubanos para ocupar postos em cidades e regiões que até então não havia interessado aos médicos brasileiros. Há uma massiva campanha veiculada nos órgãos de comunicação contra os médicos cubanos, e que se dirigia diretamente à classe média anticomunista, que não se utilizava do SUS e que, portanto, não eram positivamente atingidos pelos serviços de saúde expandidos.

O que deve ser chamado a atenção neste quadro é que a partir da campanha eleitoral para a disputa no segundo turno em 2014 até a 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff, houve um deslocamento do discurso político popular, da esquerda para a direita. O PT foi, e continua sendo, um partido importante no país, tem certamente entre seus quadros, um dos maiores líderes políticos contemporâneos do mundo o ex presidente Lula e continua com quadros importantes de filiados. Durante os meses que duraram os diversos momentos do processo do impeachment o partido liderou grandes manifestações a favor da presidenta. Entretanto, já construía um discurso reativo, e não mais propositivo. Reativo ao avanço das forças conservadoras, que se espraiavam nos três poderes da república e nas ruas.

Neste quadro é particularmente importante ter presente da questão da corrupção. Apesar de dividir com o comunismo uma longa presença no discurso e na vida política brasileira, tem características muito distintas e, possivelmente, a mais importante seja a sua capacidade de circular e estar presente em todo o espectro político partidário.

O corrupto no Brasil sempre foi o outro, independente de quem o outro seja. Daí que a questão não ter a importância muitas vezes esperada como decisiva para escolha do eleitor de seus candidatos nas eleições. Em 2013 a corrupção apareceu nas manifestações de rua como um genérico. Todos os políticos foram identificados como corruptos, a política era sinônimo de corrupção. Quando da campanha do impeachment de Dilma Rousseff, que nunca foi acusada de corrupção, o fato de que o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha ser alvo de inúmeras acusações de atos de corrupção não causava nenhum problema para as classes médias enfurecidas nas ruas.

No dia 17 de abril de 2016 quando esta mesma Câmara aceitou oficialmente a abertura do processo de impeachment contra Dilma, um expressivo número de deputados e algumas deputadas ao declararem seu voto e o fizeram em nome da moralização e contra a corrupção que atribuíam ao governo do PT. Muitos deles foram posteriormente acusados de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e alguns inclusive presos. A pretensa luta contra a corrupção apenas circulou e fez o papel que lhe cabia. O próprio candidato derrotado nas eleições de 2014 tem seu nome associado a pelo menos 10 processos no âmbito das investigações contra a corrupção. A prisão de Lula, depois de um rumoroso julgamento, acompanhado com grande detalhe pela mídia, onde ele é acusado, sem provas, de ser proprietário de um apartamento, que teria recebido em troca de favores a uma empreiteira, não abalou radicalmente seus eleitores, segundo as pesquisas eleitorais feitas após sua prisão.

O Brasil chega a 2018 , ano de eleições gerais com uma profunda crise no discurso democrático construído pós regime militar. O impeachment de Dilma Rousseff encerrou um ciclo. Além de fragilizar o discurso petista, que dominou a política por 16 anos na presidência da república, rompeu com o discurso democrático de forma muito mais ampla e radical. O que apontávamos anteriormente como discursos com bastante envergadura, como os do PT e PSDB estão fragilizados. O PMDB, que surfou a favor de um ou outro, conforme os ventos, tem agora a presidência da República, mesmo assim não consegue articular minimamente em sentido para si.

No vácuo discursivo que se seguiu ao impeachment de Dima Rousseff se identifica dois fenômenos: a politização do Judiciário e o discurso de extrema-direita. No campo jurídico o discurso político ocorre pelo menos em dois níveis bem visíveis e vastamente publicizado pelas grandes cadeias de TV e jornais de amplitude nacional. No nível da primeira instância, a mídia transforma um juiz local em justiceiro, muito ao gosto de um país com uma cultura de violência muito arraigada, onde a vingança, a justiça com as próprias mãos, o sofrimento dos apenados são ações que interpelam muito facilmente o cidadão comum. Há um discurso que circula nos grandes jornais impressos e televisivos, que é o da construção da oposição entre o cidadão de bem e o outro, o corrupto, o vândalo, o usuário de droga, o assaltante. Um juiz de 1ª Instância da cidade de Curitiba, circunstancialmente transformado em responsável pelos processos da chamada operação lava-jato, tem um espaço de justiceiro neste discurso, de defensor do cidadão de bem.

O segundo nível do discurso jurídico politizado é o do Supremo Tribunal Federal (STF), que aparece empelicado por uma membrana de termos jurídicos, leis e citações de juristas não conhecidos pelo cidadão leigo, além de uma retórica oitocentista no tratamento interpessoal, que cria uma áurea de respeitabilidade. Aos ministros do STF falta o necessário distanciamento de uma corte suprema no papel que lhe cabe de guardiã da constituição. No Brasil a desorganização discursiva da Corte chegou ao limite do Ministro Gilmar Mendes do STF ao criticar a desinstitucionalização que segundo ele acontece no Brasil afirmar: “O único consolo que eu tenho é que é o PT que está sofrendo com essa desinstitucionalização” (Folha de São Paulo, 6 de abril de 2018) Uma declaração com este teor , fortemente ideologizada partindo de um membro da suprema corte é sintomático de uma situação de crise do estado de direito no país.

O discurso político de extrema-direita brasileira tal qual está sendo construído no momento é uma grande novidade. Ao contrário da extrema-direita europeia que atualiza o discurso fascista, no Brasil não há discurso a ser atualizado, porque a extrema-direita, salvo o Integralismo na década de 1930, nunca disputou espaço político, sempre chegou no poder por golpe de estado e com discursos que desprezavam a política.

No caso do Brasil os acontecimentos dos 4 últimos anos desorganizaram de tal forma o discurso político, que se abriu chance ao discurso da ordem, que garanta alguma estabilidade, qualquer estabilidade. Colocando o foco da questão nos partidos políticos, percebe-se que nem o PMDB, que ficou com a presidência da República, nem o PSDB que foi o articulador do golpe foram capazes de articular um discurso político de centro ou centro-direita. O único discurso que ainda sobreviveu, dos que estavam no governo, ainda que alquebrado, foi o do próprio PT, muito por conta da popularidade do líder máximo partido, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Um terço do eleitorado brasileiro aparece em pesquisas como eleitor de Lula, mesmo tendo sido ele condenado a mais de 10 anos de prisão e se encontrar preso no momento das pesquisas. O futuro desta configuração discursiva é incerta, mas mesmo assim é a única que resta e isto faz com que a grande parte daqueles que se mobilizaram contra Dilma e o PT estejam discursivamente desamparada, com o fracasso do PMDB e do PSDB de se apresentarem como capaz de construir alternativas políticas.

É neste vácuo que aparece o discurso jurídico e o discurso da extrema-direita política como capazes de restabelecerem a ordem. Temos uma grande massa de eleitores, de cidadãos de extrema-direita no Brasil? Não, historicamente não, mas em momentos que o caos se sobrepõe a ordem no discurso público cresce a crença que “a ordem e a clama são boas – Não interessa a quem elas pertencem” ( Thomas Mann). Nestes momentos a ordem democrática que não é calma nem garante a bonança, porque envolve incertezas e conflitos próprios da democracia se encontra ameaçada.

Em síntese, o ocorreu no processo da construção da crise que se desenrola entre 2013 e 2018 são sucessivos rompimentos dos discursos que deram sentido ao mais longo período democrático da histórica do Brasil. A implosão discursiva resultou em um excesso de fragmentos à disposição de novas articulações, que podem se articulares em discursos anti democráticos, na medida em que as rupturas são vividas como a instalação do caos.

Portanto, aos vencedores, aqueles que arquitetaram o golpe como uma forma de varrer o PT das disputas políticas e eleitorais do país, restaram as batatas, como diria Quincas Borba.

(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.

(**) Este texto é uma versão parcial e resumida de um artigo que será publicado em livro ainda em 2018.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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