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9 de abril de 2020
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19:22

O ódio nos tempos do coronavírus

Por
Sul 21
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O ódio nos tempos do coronavírus
O ódio nos tempos do coronavírus
Jair Bolsonaro | Foto: Isac Nóbrega/PR

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Submetidos às restrições inerentes ao necessário distanciamento social, e ainda imersos no universo de dúvidas e angústias trazidas com a nova pandemia – e, sobretudo, pela inacreditável disposição do chefe do executivo federal em ampliar seus efeitos deletérios sobre a população, em especial a mais pobre – talvez a lembrança do momento político imediatamente anterior à chegada e disseminação do coronavírus no País, seja útil para melhor entender a complexa situação que vivemos hoje.

Cabe recordar que o primeiro ano do mandato presidencial do tosco personagem eleito em 2018 foi marcado por diversas “crises”, desencadeadas por ele mesmo, seus filhos e os ministros do dito “núcleo ideológico” do governo – mediante as quais se buscou promover a contínua reafirmação do líder junto ao seu público mais fiel, a tal “bolha” das redes virtuais. Enquanto isso, a agenda de entrega da riqueza nacional, privatização dos serviços públicos e supressão dos direitos e conquistas sociais, seguiu tocada a pleno vapor, previamente garantida pelo endurecimento paulatino dos instrumentos de repressão estatal, ambas as tarefas executadas pela dupla Guedes-Moro.

Malgrado as investidas agressivas do truculento presidente, feitas ao longo do ano passado, de modo particular contra o Parlamento e o Judiciário, tenham-se prestado, como referido, ao reforço permanente da coesão e mobilização da parcela da população que o apóia incondicionalmente, a instabilidade delas decorrente passou a provocar, de outra parte, crescente preocupação nos centros reais do poder – a saber, a banca e os rentistas que, de dentro e de fora, capturaram o Estado brasileiro e lhe impuseram a pauta neoliberal, tocada inicialmente por Temer e continuada por seu sucessor.

Em virtude disso, os militares de alta patente que, até então, à exceção do general Augusto Heleno, exerciam papel secundário no ministério, passaram a ocupar, desde o fim de 2019, alguns dos postos mais importantes, a começar pela Casa Civil, cujo novo titular, Braga Netto, militar ainda na ativa, dispôs-se a reconstituir as relações do executivo com os demais poderes, ao que parece com algum êxito.

Já montado este novo cenário – no qual o chefe de governo, visivelmente esvaziado, não se sente à vontade e volta e meia esperneia, distribuindo patadas a torto e a direito – o verão de 2020 foi sacudido por um fato, cujo tremendo significado político foi obscurecido, de certa forma, pela introdução do novo vírus e de tudo que, em consequência, vem ocorrendo desde o início de março: a morte de Adriano da Nóbrega, ex-major da PM fluminense, e líder das milícias que assolam, senão governam há anos o estado do Rio de Janeiro.

Como amplamente divulgado, o sinistro miliciano foi identificado, pelos agentes do Ministério Público e Polícia Civil daquele estado que investigam o homicídio de Marielle Franco e seu motorista, ocorrido em 2017, como um dos autores, ou mandante daquele bárbaro crime. Mais que isso, essas investigações trouxeram a lume suas relações com Bolsonaro e seus filhos – tão estreitas a ponto de suas mulher e mãe terem trabalhado no gabinete de Flávio, o rebento chamado “01”, então deputado estadual e hoje senador. Esta visível cumplicidade, de quem foi guindado ao mais alto posto político do País com policiais criminosos, reveste-se da maior gravidade, e já se descortinara quando da descoberta das manobras financeiras de seu factotum, outro ex-PM, Queiroz, o desaparecido mais notório de nossa desditosa pátria.

Essa espantosa situação decorre de múltiplos fatores, dos quais convém destacar dois, particularmente. Em primeiro lugar, o fenômeno das denominadas “milícias”, grupos de policiais, militares e civis, e bombeiros, que surgiram nos últimos anos do século passado e início da década de 2000, primeiro na Baixada Fluminense e na Zona Oeste do Rio de Janeiro, de onde se espalharam para diversas favelas cariocas. Como ensina o sociólogo e professor José Cláudio de Souza Alves, que pesquisa o tema há 26 anos, no livro “Dos barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense”, estas organizações criminosas foram criadas, inicialmente, no processo de ocupação ilegal de terras urbanas e para prestar proteção a comerciantes locais – e, com sua expansão, passaram a dominar naquelas áreas as atividades mais lucrativas, como venda de gás e fornecimento de água e televisão a cabo.

O estudioso chama a atenção para um aspecto muito importante: como grupos de extermínio que são, as milícias de hoje sucederam na região aos “esquadrões da morte,” que operaram ali nos anos da ditadura militar, em especial a partir do final dos anos 1960 – e que eram, também, constituídos por agentes das polícias estaduais, além de militares federais. Interessante acrescentar que, mais recentemente, a ampliação do poder dos milicianos levou-os a estabelecer vínculos associativos com os banqueiros do jogo do bicho – exatamente como os esquadrões da morte o fizeram, cinquenta anos atrás: lembre-se que o “Capitão Guimarães”, por exemplo, famoso bicheiro e patrono de escolas de samba, era originalmente membro da “comunidade de segurança e informação”, sistema repressivo que usou os chefes da contravenção e suas estruturas na perseguição aos dissidentes do regime.

Pois agora, pouco antes de morrer, Adriano da Nóbrega, chefe do chamado “escritório do crime”, tinha acabado de consolidar a nova aliança dos milicianos com os bicheiros – o que explica, entre outros crimes, a execução de dirigente do Salgueiro, na terça feira de Carnaval.

O outro ponto, a merecer especial destaque e exame, explica o anterior. Trata-se da militarização das forças públicas estaduais, mediante a criação das policias militares procedida durante o período excepcional, tornando-as “forças auxiliares” do Exército, encarregadas do policiamento ostensivo no âmbito dos estados. Ocorre que, após a democratização do País, essa situação não foi alterada; ao contrário, a crescente autonomia destas instituições, organizadas militarmente, acabou por torná-las cada vez mais opacas e infensas ao controle civil e democrático.

Não bastasse a incompatibilidade conceitual entre sua natureza institucional – militar – e o caráter da atividade de polícia – civil, as polícias militares estaduais continuam formando seu pessoal, e orientando suas ações sob a nefasta “doutrina da segurança nacional”, criada pela direita militar francesa, desenvolvida nos Estados Unidos na guerra fria e introduzida no Brasil pelos militares, durante a ditadura. O núcleo desta ideologia de combate consiste na noção de “inimigo interno”, figura discursiva em torno da qual se articula o antagonismo essencial ao seu funcionamento. E se o inimigo a destruir era, no período ditatorial, o “subversivo” (ou suas variações, o “terrorista”, ou o “comunista”), hoje em dia, nas academias de polícia militar brasileiras, ele é incutido no imaginário de oficiais e praças na forma de outros personagens retóricos – o “marginal”, o “vagabundo”, a “bandidagem”.

Não é preciso dizer que, no plano duro da realidade social, estes inimigos internos – que, por natureza, agem na clandestinidade e são fluidos, dispersos entre a população – são materializados nos “suspeitos de sempre”: jovens, negros ou pardos, habitantes das periferias das cidades ou das favelas nos morros. O resultado absurdo desta formação distorcida dos agentes estatais, encarregados da prevenção e repressão à violência e à criminalidade, e das políticas dela decorrentes, não poderia ser outro: as polícias brasileiras, notadamente as militares estaduais, são as que mais matam no mundo. Esta lógica repressiva criminosa é responsável, também, pelo outro lado da moeda: os policiais brasileiros são os que mais morrem em serviço.

Esta ideologia da institucionalização do ódio – aos pobres e aos negros, sobretudo, mas também às mulheres e ecologistas, homossexuais e transexuais, esquerdistas e artistas – há mais de trinta anos tem encontrado ampla ressonância no grotesco tipo que hoje ocupa a curul presidencial, o qual, não por outra razão, tornou-se a liderança nacional preferida de policiais, sobretudo militares; mas também de oficiais intermediários e subalternos, e das praças das forças armadas; e de guardas municipais e privados, grupos permanentemente mobilizados, por ele e seus acólitos, mediante a exaltação do uso de armas, da violência policial e da tortura, da misoginia e da homofobia.

Tal contingente, por certo, embora expressivo, não teria condições de guindar seu “mito” à condição atual; para tanto, sabe-se, devido a uma conjuntura muito peculiar, foi necessária a adesão da burguesia e da classe média alta, além dos extratos médios baixos e de parcela do proletariado e do campesinato. No entanto, ele constitui o núcleo duro do eleitorado bolsonarista, e sua coesão e fidelidade dificultam, senão impossibilitam, ao menos neste momento, qualquer solução à crise política que signifique afastar formalmente o titular do Planalto de suas funções. O que explica a aparente opção dos generais que o cercam pelo esvaziamento tácito dos seus poderes, garantindo à área econômica do governo e ao Parlamento a condução política do País, sem maiores traumas internos.

Em sentido contrário, para a oposição e, até mesmo para os ex-aliados, agora atarantados com a dimensão do despreparo e da truculência de Bolsonaro – a quem ajudaram a eleger, não se esqueça – seu afastamento teria, entre tantos outros, o benéfico efeito de impor obstáculo, ainda que simbólico, ao processo de “milicialização” da política brasileira, decorrência perversa, como se viu, da hipertrofia do poder conferido às incontroláveis polícias militares dos estados.

As vicissitudes do momento trazem à lembrança a magnífica história, contada por Gabriel Garcia Márquez, no seu magistral “O amor nos tempos do cólera”, de dois idosos colombianos que, aproveitando uma epidemia ocorrida, no início do século passado, em Cartagena de las Índias, resgataram o impossível amor de sua juventude, vivendo-o intensamente na eternidade de sua velhice.

Lembrar este comovente relato aos democratas e humanistas, no Brasil de hoje, pode servir-lhes de estímulo, diante da dupla tarefa que os espera: sobreviver a uma pandemia virulenta e, o que é ainda mais árduo e necessário, cerrar fileiras para neutralizar um mal social, maior e mais deletério que qualquer vírus – a institucionalização do ódio e do fascismo.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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