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22 de outubro de 2019
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19:28

Supremo dilema

Por
Sul 21
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Supremo dilema
Supremo dilema
 Foto Carlos Moura/STF

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Nesta semana, o Brasil prepara-se para assistir ao mais novo ato do drama político nacional, desenrolado no centro da arena judiciária, tal que vem ocorrendo desde meados da década passada. É sempre oportuno recordar que, a partir do julgamento, então, pelo Supremo, da Ação Penal 470 – o caso batizado de “mensalão”, pela mídia oligopólica – desencadeou-se o processo de judicialização da política, cujo objeto central sempre foi a criminalização do PT e, em especial, de seu principal líder e fundador. De fato, mesmo que, na ocasião, sua reação bem sucedida e a ampla aprovação de seu governo, reeleito com consagradora votação em 2006, tenham impedido a plena consecução dos objetivos políticos subjacentes à referida demanda, dela resultou, mais além da condenação de importantes correligionários e aliados petistas, o sinal verde para as manobras típicas de “lawfare”, as quais, dez anos depois, desembocariam no impedimento ilegal da Presidenta Dilma – seguido do processo criminal, prisão e cassação dos direitos políticos de Lula.

Deve-se lembrar, ademais, que a atuação da dita Suprema Corte foi decisiva para atingir estes três desideratos, ao alterar, em julgamento ocorrido em abril do ano passado, a tradicional jurisprudência que, em estrita obediência ao princípio constitucional da presunção de inocência, vedava até então o início do cumprimento de sanção privativa de liberdade, antes de decisão condenatória definitiva. A respeito, foi registrado aqui mesmo nesta coluna, em outro artigo, que “…o Supremo, fiel à sua história, cumpriu mais uma vez o lamentável papel de servente dos poderosos.

Malgrado as esperanças suscitadas pelo conflito explícito que contrapõe, nos últimos tempos, de um lado a direita tradicional, incluindo seus representantes na corte auto proclamada excelsa, e de outro os novos falangistas do aparato policial-judicial federal, ao fim e ao cabo, por maioria mínima, os supremos ministros mantiveram o entendimento adotado a partir de 2016, quanto à possibilidade de execução da pena após condenação exarada em segundo grau – mesmo sem trânsito em julgado desta decisão…” (“A presunção da inocência e o triunfo da boçalidade”, postado em 03/05/2018).

Tratou-se de típica e lamentável decisão judicial ad hoc, ou seja, proferida sob medida, para atender interesses contingentes, sobretudo as pressões exercidas, até mesmo mediante ameaças explícitas do próprio ministro do exército – com o entusiástico apoio de seus camaradas de arma, a mostrar, mais uma vez, quem são de fato as supremas autoridades neste desditoso País.

Pois agora, a mesma corte, dita excelsa, presta-se a reexaminar a questão, provocada por partidos políticos e entidades da sociedade civil, os quais, irresignados com o infeliz acórdão então prolatado, invocam com razão, em Ações Diretas de Constitucionalidade, seu frontal desrespeito ao disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República.

Como se sabe, o julgamento das mesmas foi iniciado na semana passada, com a leitura do relatório do ministro Marco Aurélio e as sustentações orais dos advogados dos autores das ações e dos chamados amici curiae, designação dada às organizações que se habilitaram, em nome da cidadania por elas representada, a auxiliar os demandantes nos seus propósitos de restaurar o entendimento tradicionalmente vigente na matéria – segundo o qual “…ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória…”, nos precisos e claros termos daquele dispositivo constitucional.

Na próxima quarta feira será retomado o processo, com os votos do relator e seus colegas; e, desta feita, espera-se que seja restaurada a única interpretação válida da aludida norma constitucional, de máxima relevância para a cidadania brasileira – a ponto de integrar o rol de garantia e direitos individuais que abre a Carta Magna, e que, por isso mesmo, constitui uma de suas “cláusulas pétreas”, insuscetíveis sequer de apreciação em emenda constitucional, por expressa determinação de seu artigo 60, § 4º, inciso IV.

A esperança de retorno ao bom senso e ao respeito estrito à legalidade, em matéria penal, de parte daqueles que se costuma apontar como os últimos guardiões da Constituição, parece agora se justificar. Efetivamente, as revelações ainda em curso, feitas à chamada opinião pública pelo Intercept Brasil – a propósito dos abusos e desmandos da incensada “força tarefa da operação lava-jato”, aliás, amplamente conhecidos e denunciados pela absoluta maioria comunidade jurídica e acadêmica – não permitem mais qualquer dúvida quanto ao caráter casuístico e perverso da equivocada decisão adotada, por escassa maioria, visando precipuamente a afastar Lula da disputa eleitoral do ano que passou.

Diga-se que, agora, não é ele nem seu advogado, tampouco seus partidários, que o dizem: isso é afirmado, reiterada e documentalmente, em várias ocasiões, pelos jovens turcos da brigada inquisitorial formada em Curitiba, sob a batuta do juiz que virou ministro e quer ser presidente. O mínimo que os supremos magistrados podem fazer, agora, para atenuar os estragos que ajudaram a causar à nossa jovem e fragilizada democracia – sob ataque severo e permanente desde o golpe midiático-judicial-parlamentar de 2016 – é restaurar o primado da Constituição, em um tema especialmente sensível, atinente que é à defesa da liberdade individual frente ao poder de Estado.

A propósito, o ponto fundamental a ser desatado na questão em tela, ultrapassa em muito as contingências da disputa política que divide o Brasil, e invadiu o terreno judiciário, de alguns anos para cá – e é este aspecto transcendental, de natureza política, na verdadeira acepção do termo, que cumpre destacar aqui devidamente.

Isto porque a discussão travada a respeito da (im) possibilidade de execução provisória da sentença penal condenatória não transitada em julgado, mais do que uma polêmica jurídica, constitui a expressão do conflito entre dois interesses contrários – conflito esse que se dá em duas dimensões políticas distintas, mas complementares.

Trata-se, primeiro, da oposição entre os partidários do que se convencionou chamar de “punitivismo penal”, que replicam entre nós a ideologia de “law and order”, originada dos Estados Unidos, centrada na articulação discursiva das demandas repressivas autoritárias, tendo por pretexto a violência e a criminalidade; e, de outra parte, os defensores do direito penal liberal, conquista civilizatória gestada no Iluminismo, consolidada nos últimos dois séculos, no Ocidente e, desde então integrante do patrimônio jurídico universal e contemporâneo.

Esta disputa vem-se acentuando, dentro e fora do Brasil, desde os anos 1980, com o advento do neo-liberalismo econômico: na verdade, a escalada repressiva caracterizada, nos EUA, pela carcerização crescente da população pobre, consiste na contrapartida político-jurídica do chamado “reagonomics” – responsável por mandar à prisão mais de dois milhões de pessoas. Hoje, aquela política penitenciária vem sendo abandonada pelo “grande irmão do norte”; mas em nosso País, infelizmente, inspirou as autoridades políticas e judiciais nas últimas três décadas, ao ponto de levá-lo a ter a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de oitocentos mil cidadãos encarcerados. E, o que é pior, com viés de alta!

Nos últimos tempos, em particular após a eleição à mais alta investidura brasileira, de um personagem que marcou sua trajetória pelo discurso repressivo mais autoritário – arauto que é da violência estatal desbragada, adepto da tortura e da morte de oponentes – aquele conflito transcendeu os limites da política criminal e penitenciária, e passou a assumir outra e maior dimensão. A questão penal inscreve-se, assim, na luta política que confronta, no Brasil atual, de um lado, a direita fascista e seus apoiadores, muito úteis e pouco inocentes; e na frente adversa, os defensores da democracia – desde a esquerda democrática até os liberais e, mesmo, os setores conservadores ainda preocupados com a preservação de padrões civilizatórios mínimos nas relações sociais.

Este, pois, o dilema diante do qual estão novamente nossos juízes supremos: sucumbir de vez à retórica da barbárie, legitimando-a – ou reagir com firmeza ao avanço do fascismo, reafirmando a prevalência dos postulados do direito penal da culpa, apanágio irrenunciável da civilização.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012/2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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