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2 de setembro de 2019
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16:57

A Lei da Anistia e o palpite infeliz de Jobim

Por
Sul 21
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A Lei da Anistia e o palpite infeliz de Jobim
A Lei da Anistia e o palpite infeliz de Jobim
Painel com rosto de alguns dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil. (Reprodução)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

O gaúcho Nelson Azevedo Jobim é pessoa conhecida e influente nos meios políticos de Brasília, onde exerceu diversos cargos desde o processo de redemocratização do País, no final dos anos 80 do século passado – de deputado constituinte a ministro da Justiça, no governo de FHC, passando por ministro do Supremo e ministro da Defesa nas administrações petistas, além de advogar, nos intervalos, junto aos Tribunais Superiores.

De um tempo para cá, aceitou o convite para ser sócio-diretor do banco BTG Pactual e, no mês passado, concedeu entrevista na qual teceu críticas à atuação da chamada “força tarefa da operação lava-jato” – em especial, ao comportamento promíscuo entre os procuradores que ali atuam e o então juiz Sérgio Moro, comportamento esse que já tinha sido denunciado pelos advogados e que, agora, está sendo escancarado pelas revelações disponibilizadas pelo jornalista norte-americano Glenn Greenwald e sua equipe. Na entrevista, com acerto, ele destacou que a dita Suprema Corte “…foi leniente…tolerou os exageros, os abusos que foram cometidos e agora estão ficando muito claros com essa história do Intercept…” (“STF tolerou abusos cometidos pela Lava Jato, diz ex-presidente do Supremo”, Portal UOL, 08/07/2019).

Ao final da matéria, contudo, a pretexto de explicar a deterioração da situação política que culminou na eleição à presidência da República de um tipo como Bolsonaro, o entrevistado incorreu em graves impropriedades e equívocos a respeito da chamada Lei da Anistia, que acaba de completar quarenta anos, neste final de agosto – os quais, pela relevância do tema, não podem passar em branco. Assim é que, depois de referir que quando era titular da pasta da Defesa, no governo de Lula, havia forte discussão interna acerca da revisão daquele diploma legal, ele declarou que sua posição, com a qual o presidente partilharia, era de que “…essa lei não tem como mexer mais, esse assunto é encerrado…” E completou, dizendo que teria havido “…um pacto político na época com o governo…Figueiredo. O PMDB, na época, participou desse pacto. Acertaram isso de que a anistia era bilateral, ou seja, abrangia os militares e todos…”.

Tal afirmação consiste em crasso erro histórico, e reproduz a versão que os defensores da ditadura veiculam acerca do assunto, com a solícita conivência da mídia oligopólica e de parte da classe política, interessados todos em manter no esquecimento os crimes praticados, durante a ditadura militar instaurada em 1964, pelos agentes do sistema montado à época para reprimir os oponentes do regime – reais ou potenciais. Em primeiríssimo lugar, como já demonstrado neste mesmo espaço, em artigo publicado em três partes, por motivo de transcurso, então, de seus trinta e cinco anos, a Lei Federal n. 6.683/1979, batizada de Lei da Anistia, não foi fruto de qualquer pacto político (“Verdades e Mentiras sobre a Lei da Anistia”, Sul21, agosto de 2014).

Muito ao contrário, ela resultou de projeto enviado pelo governo militar ao Congresso Nacional, o qual, malgrado a forte mobilização nacional contrária aos seus termos limitados – a memorável campanha por “anistia ampla, geral e irrestrita” – terminou sendo aprovado, pela escassa maioria de seis votos. Maioria obtida, aliás, mediante o emprego de artifícios, tais que o voto dos famigerados “senadores biônicos”, invenção dos ditadores para tentar evitar as sucessivas derrotas eleitorais que vinham sofrendo desde 1974.

Chega a ser espantoso o desconhecimento revelado a respeito pelo eminente cortesão brasiliense, que chegou a citar o PMDB como partícipe do tal acordo que não houve – quando é certo que esta agremiação sequer existia em 1979, só vindo a ser criado posteriormente, ao final desta legislatura: então, como é sabido, havia apenas dois partidos, o da situação, ARENA, e o da oposição, MDB, ambos criados pelo governo ditatorial.

Não se trata, este, de um mero equívoco sem maiores consequências, pois a partir de tal pretendido, e inexistente pacto político, tenta-se construir a ideia, em nada inocente, de que houve a negociada transição do regime ditatorial para a democracia; e que, portanto, qualquer iniciativa de revisão de seu instrumento legal seria ilegítima. Foi isso, aliás, que o Supremo decidiu ao julgar, em 2009, ação interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, visando à re-interpretação do § 1º do artigo 1º daquela lei, com base no qual vinha sendo (e continua ainda) impedida a responsabilização criminal dos agentes dos órgãos repressivos, pelos abusos que cometeram no período ditatorial.

Tratava-se, a medida postulada, da “Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional” (ADPF 153/2009), instrumento previsto na Constituição Federal visando à declaração, pelo Supremo, da incompatibilidade entre os preceitos e princípios daquela, com a interpretação dada àquele artigo – e segundo a qual os chamados “crimes conexos” aos políticos, praticados pelos beleguins da ditadura, estariam definitivamente anistiados.

O embasamento lógico-jurídico da pretensão esboçada pelo órgão de classe dos advogados brasileiros, era, e é irrespondível – uma vez que a Carta Magna expressamente prescreve que “…a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a tortura…”, além dos crimes de terrorismo, tráfico ilícito de entorpecentes e aqueles definidos como hediondos (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLIII, nossos os grifos). Malgrado isso, o STF rejeitou a arguição proposta pela OAB, em decisão juridicamente inconsistente e politicamente pusilânime – na qual não faltaram os apelos à “estabilidade social”, eufemismo com o qual se tenta, em vão, ocultar o verdadeiro motivo a ela subjacente, qual seja, não desagradar os supremos poderes militares.

No entanto, isso não encerrou a questão: com efeito, no ano seguinte, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – tribunal da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao qual o Brasil se subordina e a cujas decisões deve obediência – julgando demanda proposta por familiares de militante da chamada “guerrilha do Araguaia”, torturado e morto por militares do exército brasileiro, proferiu sentença reconhecendo a prática destes atos, ali reputados como “lesa humanidade”, de acordo com a legislação penal humanitária internacional.

Na sentença proferida no “caso Lund”, como é conhecido este processo, além de reiterar a proibição expressa de que o Brasil continue a usar leis visando anistiar estes delitos – repita-se, “crimes contra a humanidade”, dentre os quais tortura, sequestro, morte e desaparecimento de oponentes políticos – a CIDH determinou ao Estado brasileiro que criasse uma comissão da verdade, destinada a fazer a apuração oficial das graves violações a direitos humanos perpetradas no território nacional, ou fora dele, contra cidadãos nacionais e estrangeiros, durante o período ditatorial (1964 a 1985). Foi em razão disso que, em 2011, foi editada a Lei Federal 12.528 que criou a Comissão Nacional da Verdade, a qual foi instalada no ano seguinte, realizando até dezembro de 2014, quando apresentou seu Relatório, importantíssimo trabalho de coleta de depoimentos e documentos sobre aquelas violências, reunindo relatos até então dispersos nos arquivos públicos, acervos privados, universidades ou, simplesmente na memória de suas vítimas, testemunhas e, até mesmo seus autores.

A propósito, cabe destacar que, também neste particular, o ex-ministro da Defesa cometeu outro erro grosseiro, na aludida entrevista, ao dizer que aquela comissão foi criada “…para tentar trazer notícias em relação aos militares, mas não trazer notícias em relação aos atos que teriam sido praticados pela oposição à época…” (sic). Como se viu, a CNV foi criada em virtude de lei – isto é, ato do Parlamento brasileiro – cumprindo determinação explícita de sentença prolatada por organismo judicial internacional. Ademais, suas apurações envolveram não apenas os crimes perpetrados pelos agentes da repressão, mas também a resistência e oposição da cidadania brasileira ao regime de força instalado pela quartelada de 1º de abril de 1964.

Por fim, a acusação de “parcialidade” que lhe é feita pelo ilustre personagem em tela, seria até risível, não fora a seriedade do tema, atinente às violações praticadas contra os direitos humanos fundamentais – e merece ser veementemente repelida. Com efeito, a conhecida afirmação, feita por militares e defensores da ditadura – segundo a qual não se teria procurado ouvir a sua “versão” dos fatos ocorridos durante o regime ditatorial, notadamente os atos imputados aos seus opositores – não resiste à menor análise.

Como se sabe (e Jobim, em especial, não o pode ignorar) a ditadura brasileira, diferentemente do que ocorreu com suas congêneres do cone sul da América do Sul, nos anos 1970 e 1980, não adotou uma política oficial de extermínio dos adversários – o que não a impediu, aliás, de recorrer a isso, quando julgou necessário. Preferiu antes, para disfarçar o seu indisfarçável caráter autoritário, criar uma legislação própria e designar uma justiça especial para julgar os chamados “crimes contra a segurança nacional”, em conseqüência do que milhares de cidadãos e cidadãs foram processados perante a Justiça Militar Federal – Auditorias Militares e Superior Tribunal Militar (STM).

Assim, a pretendida “versão” dos acólitos dos ditadores e seus agentes, já consta, devidamente documentada, em cerca de oito centenas de processos arquivados no STM. Faltava, por óbvio, o relato das vítimas e testemunhas (e até mesmo dos violadores) sobre as violências sofridas de parte de um aparato repressivo que atuava, sistematicamente, à base de sequestros, torturas, prisões ilegais e, até mesmo mortes e desaparecimentos forçados de milhares de brasileiros e brasileiras, naquele “período infeliz de nossa história”. Portanto, como dito pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, a “…CNV foi instituída por lei e seu relatório representa a versão oficial do Estado brasileiro sobre os acontecimentos. Juridicamente, nenhuma autoridade brasileira, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da CNV, dado seu caráter oficial…” (PFDC/PGR, Nota Pública n.º 1-2019).

Causa espécie, pois, que um homem ilustrado e experiente como Nelson Jobim, tenha feito as espantosas afirmações ora rebatidas. No entanto, embora aparentemente inexplicáveis, elas se explicam quando se atenta, não apenas à sua origem e formação conservadoras, quanto, sobretudo à sua passagem pela chefia do ministério da Defesa: efetivamente, o convívio com os militares de mais alta patente – tão estreito, ao ponto de envergar uma inédita farda de “ministro”, que lhe foi especialmente confeccionada para visitar tropas na Amazônia – parece ter-lhe impregnado fortemente com a visão de mundo e os preconceitos vigentes na caserna.

Resta lamentar, por fim, que o apreço do ex-ministro pela eterna “conciliação por cima”, com as elites autoritárias do país, tenha sido partilhado também pela maior liderança política de nossa história, com resultados diametralmente opostos – uma vez que, enquanto aquele se tornou banqueiro, Lula está condenado a permanecer indefinidamente na prisão, por crimes que não cometeu.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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