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3 de agosto de 2019
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20:39

A escalada criminosa de Bolsonaro

Por
Sul 21
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A escalada criminosa de Bolsonaro
A escalada criminosa de Bolsonaro
Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Carlos Frederico Guazzelli (*)

O militar reformado do Exército que, por especial e lamentável conjunção dos astros que governam a política, foi colocado na Presidência da República pela maioria dos votantes do último pleito, frequenta há mais de três décadas – por atos, opiniões e gestos – diversos capítulos da legislação penal brasileira.

Ainda antes de ingressar na vida parlamentar, quando era tenente do Exército, em episódio infelizmente pouco divulgado junto à chamada opinião pública, envolveu-se em planos que incluíam até mesmo a ameaça de cometimento de atos típicos de terrorismo, tendo como pretexto reivindicações de melhor tratamento financeiro aos militares – o que terminou provocando sua precoce reforma como capitão. Tais eventos, aliás, levaram-no a ser eleito, primeiro como vereador no Rio de Janeiro, e depois em sucessivos mandatos de deputado federal pelo estado fluminense.

Sua vida parlamentar, a par de irrelevante, limitada à mera representação de interesses corporativos de policiais e militares, marcou-se sempre pela prática contínua de delitos contra a honra – de adversários, negros, mulheres e homossexuais. Quando não de condutas caracterizadoras, em tese, de delitos contra o Estado Democrático e a segurança nacional, vociferando reiteradamente por golpe de estado e instauração de ditadura, além de ataques frontais a instituições essenciais à vida democrática, como o Parlamento e o Judiciário.

Não bastasse tudo isso – ou, melhor dizendo, exatamente em virtude destas reiteradas atitudes agressivas e francamente antidemocráticas – sua recente candidatura ao mais alto cargo do Executivo federal amealhou, desde o início, expressivo índice de intenção de votos, oscilando ao redor de um quinto das amostras do eleitorado consultadas em diferentes pesquisas. E depois da condenação e prisão de Lula, com a consequente cassação de seu direito a concorrer ao cargo presidencial, apesar da ampla preferência da maioria da população por seu nome – dada a inestimável colaboração do sistema de justiça para a consecução do processo de paulatina dilapidação, não apenas da economia, mas da própria democracia no País – abriu-se o caminho para a chegada ao Palácio do Planalto de seu mais despreparado ocupante.

A trajetória absurda que levou semelhante personagem ao centro do poder – mercê de conjugação caprichosa e única de eventos, que passam pelo bem sucedido programa de destruição do sistema político, levado a cabo pelos jovens turcos do judiciário federal de Curitiba, até o uso de mecanismos escusos e massivos de propaganda nas ditas redes sociais, introduzidos diretamente pela extrema direita americana – tem sido objeto de estudos e debates, dentro e fora do país, e é aqui lembrada como pano de fundo de fatos mais recentes.

De qualquer sorte, não se pode deixar de dizer que, precisamente por sua postura autoritária, o tosco capitão encarnou à perfeição as aspirações de uma franja expressiva do eleitorado, há tempos articulada pelo discurso de lei e ordem veiculado pela mídia oligopólica – especialmente na classe média baixa, tradicional caldo de cultura do fascismo. De se destacar, também, entre seus fanáticos admiradores, outro contingente, menor numericamente, mas não menos importante, por sua visibilidade e peso político: os oficiais subalternos e intermediários das Forças Armadas – tenentes, capitães, majores, coronéis e seus equivalentes; bem como os praças – subtenentes, sargentos, cabos e soldados. Além destes, a imensa maioria dos componentes das polícias estaduais, em particular, as militares.

A propósito, cabe lembrar a elucidativa entrevista concedida em dezembro do ano passado pelo general Villas Boas, então comandante do Exército, na qual ele explicitou a razão das ameaças que proferiu, meses antes, em rede social, às vésperas do julgamento, pelo Supremo, de habeas corpus impetrado em favor de Lula: ele disse que, se não o fizesse, assumindo a dianteira do processo golpista, haveria grave risco de perda do controle sobre a massa de seus subordinados – a esta altura já empolgada pela candidatura de Bolsonaro, mesmo que ela não fosse a preferida dos escalões superiores.

Razões de sobra existiam, e ainda existem, para que os generais não tivessem o mesmo fervor que seus comandados votam a tão grotesca figura – a ponto de tratá-la como “mito”: é que, de sua passagem abreviada pela caserna, ele parece ter herdado apenas as visões de mundo autoritárias, mas não a disciplina e o respeito à hierarquia. Por isso, a princípio, o comportamento que adotou no exercício do cargo de presidente da República não deveria estranhar a ninguém – e isso não apenas por uma questão de “estilo presidencial”, como vinha sendo considerado até o momento, com imperdoável condescendência, de parte da dita grande imprensa.

No entanto, o que vem ocorrendo nos últimos tempos, passado o tal período de carência dos novos governantes, é um crescendo, uma verdadeira escalada de ataques, não apenas verbais aos mais diferentes grupos, pessoas e instituições. Não se está diante de um mero boquirroto – mas de um político que dirige seu comportamento, na condução dos mais diferentes assuntos, de forma aberta e frontalmente contrária aos direitos humanos, às conquistas sociais, ao ambiente natural, às instituições de ensino, à cultura e às minorias. Semanalmente, quando não diariamente, o país e o mundo se chocam com afirmações crescentemente ofensivas, dirigidas contra homossexuais e nordestinos, cientistas e estudantes – sem falar, é claro, dos “comunistas”, referência genérica aos integrantes dos partidos e entidades de esquerda.

Assim é que, depois de ter-se referido, na semana anterior, aos habitantes da região Nordeste como “paraíbas” – alcunha depreciativa que lhes é dirigida no Rio de Janeiro – provocando indignação generalizada, incluindo os setores conservadores que o tem apoiado, o presidente fascistóide prosseguiu no curso interminável de diatribes e, nos últimos dias, ingressou na seara dos crimes contra a honra e o respeito aos mortos. Como amplamente divulgado, a pretexto de criticar – aliás, de forma totalmente improcedente – o procedimento da direção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no processo criminal movido contra o autor da facada que lhe foi desferida em meio à campanha eleitoral, ele declarou que poderia contar ao Presidente do Conselho Federal da entidade, Felipe Santa Cruz, a forma como seu pai foi morto durante a ditadura militar.

Suas estapafúrdias declarações, a par de revelarem crueldade e completa ausência de empatia – como bem destacado pela vítima, que contava apenas dois anos de idade quando seu pai foi seqüestrado, morto e “desaparecido” por membros do aparato repressivo ditatorial – insultam a razão e o mais elementar senso de justiça, e ademais agridem irremediavelmente a verdade histórica sobre aquele período. Cabe lembrar que, ao contrário do que disse o autocrata que nos governa, a Ação Popular (AP), grupo clandestino de que fazia parte Fernando Santa Cruz, pai do Presidente nacional da OAB, nunca fez opção pela luta armada, antes preferindo dedicar-se ao trabalho político de oposição e resistência ao regime instituído pelo golpe de estado de 1964. Seus membros, pois, jamais participaram de ações empreendidas contra alvos militares, não podendo aquela organização – oriunda de movimentos estudantis e operários da Igreja Católica (JEC, JUC e JOC), inspirados pela teologia da libertação – ser tida, em hipótese alguma, como “sanguinária”, afirmação que apenas demonstra, neste tema, a mesma ignorância de resto orgulhosamente ostentada pelo boçal presidente, sempre que fala, a respeito de qualquer coisa.

A sucessão de tais despautérios, que provoca pasmo mundo afora, tem suscitado as mais diferentes hipóteses acerca de sua verdadeira natureza e finalidade. A propósito, há uma interessante metáfora, que compara a marcha do atual governo ao deslocamento de um tanque de guerra – recomendando que, ao invés de se preocupar com os ruídos por ele provocado, a cidadania deveria prestar atenção aos estragos feitos por suas lagartas: daqueles, se encarrega o líder da trupe, destes se ocupam seus ministros, levando adiante o projeto de destruição da economia nacional e entrega do patrimônio público, escorado na criminalização dos movimentos sociais e do crescente exército de deserdados, criados pelas políticas austericidas.

Se for assim, acaso seria o susto provocado por seu barulho contínuo, o que tem provocado nossa inércia diante do avanço do monstro?

A invocação histórica do regime de força imposto ao Brasil pelos militares, entre 1964 e 1985, e sua comparação com a “democracia de baixa intensidade” que vivemos, de acordo com a conceituação de Boaventura de Souza Santos, desde que o Congresso e o Supremo chancelaram a exceção – com a deposição ilegítima de Dilma, seguida do processo e prisão de Lula, e seu afastamento da corrida eleitoral – traz à mente a conhecida advertência de Marx, feita a respeito de observação de Hegel sobre as repetições de “…acontecimentos e personagens históricos…da primeira vez como tragédia, da segunda como farsa…” (“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”).

No caso brasileiro atual, diante das revelações dos procedimentos ilícitos dos investigadores de Curitiba, que culminaram na eleição de Bolsonaro, e de seus desatinos criminosos, não resta dúvida: trata-se de uma “farsa trágica”.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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