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20 de março de 2019
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17:09

A lava-jato e o Tio Sam

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Sul 21
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A lava-jato e o Tio Sam
A lava-jato e o Tio Sam
Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro. (Foto José Cruz/Agência Brasil)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Na semana passada, atendendo pedido da Procuradora-Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida em boa hora, abortou a tentativa de constituição, pelos procuradores federais que atuam em Curitiba na chamada “força tarefa da operação lava-jato”, de uma fundação que lhes permitiria administrar a vultosa quantia de dois bilhões e meio de dólares – oriunda de multa imposta nos Estados Unidos à Petrobras, por danos por esta supostamente infligidos a acionistas minoritários naquele país. A mencionada importância foi internalizada no Brasil em razão de acordo firmado pela petroleira com o Departamento de Justiça norte-americano, determinando que a mesma deveria ser confiada a “autoridades brasileiras”, com destinação pública.

Além de outros aspectos, bem destacados por muitos juristas, caracterizadores das diversas violações à Constituição e às leis embutidas no ousado e inédito projeto fundacional privado – concebido, pasme-se, por órgão a quem comete, precipuamente, a defesa do interesse público – o episódio desvela, mais uma vez, as relações estranhas, para dizer o mínimo, entre a badalada equipe curitibana e agentes daquela pasta do governo ianque.

Aliás, cabe lembrar que a própria constituição do grupo formado na capital paranaense, reunindo procuradores e policiais federais para, sob a batuta de juiz federal, investigar crimes cometidos por donos e executivos de empreiteiras, políticos e funcionários de nossa maior empresa estatal, inspirou-se nitidamente em modelo vigente nos EUA. Ocorre que lá a polícia judiciária trabalha sob coordenação direta do ministério público, de forma que a criação de “task forces”, com policiais e procuradores, para investigar fato determinado, parece adequada à legislação – diferentemente do que ocorre entre nós.

De qualquer sorte, mercê do amplo apoio popular obtido graças à intensa campanha favorável desencadeada pela mídia, desde o início da operação, os vários questionamentos suscitados quanto à legalidade de suas ações – que mesclam indevidamente as funções de investigar, acusar e julgar, contrariando o modelo constitucional brasileiro (e também da maioria dos países ditos civilizados), que determina sua rigorosa separação – foram lamentavelmente desconsiderados pelos tribunais, inclusive o Supremo, que hoje se mostra chocado diante dos abusos cometidos pelo monstro que ajudou a criar.

Interessante notar que, em trabalho acadêmico publicado em 2004 – no qual faz análise peculiar sobre as razões do sucesso da operação “manu pulite”, desfechada na Itália na década de 1980 – o então juiz Sérgio Moro deplora que, no Brasil, tanto as condições políticas, quanto a estrutura institucional não permitiriam a adoção de seus métodos, por ele exaltados.

No entanto, as mudanças da situação política ocorridas na década seguinte, ensejaram que o roteiro ali traçado – em síntese, a associação entre longas prisões provisórias, destinadas à obtenção de delações premiadas, e a ampla divulgação das operações pela imprensa, de modo a “colocar a opinião pública a favor dos juízes e contra o sistema político” (sic) – terminasse sendo adotado, exitosamente, também em terras brasileiras.

Para o êxito deste verdadeiro projeto de poder, ainda em curso, contribuíram, por certo, os cursos de “capacitação” – nada de mestrado ou doutorado, sequer um “mba” – que os investigadores paranaenses seguiram no Departamento de Justiça estadunidense, de onde trouxeram as novidades espantosas que, não apenas orientam suas ações investigativas, como recheiam as criativas decisões judiciais delas redundantes, malgrado absolutamente estranhas, e contrárias, ao sistema legal de nosso país. Cabe lembrar, neste passo, que aquele órgão, equivalente ao nosso ministério da justiça, abrange também o “parquet”, que não dispõe da autonomia institucional de que desfruta aqui: de fato, tal como ocorre em outros países, dentre eles a França e o Reino Único, o chefe do referido Departamento é também o procurador-geral.

Pois foi naquela instituição, diretamente subordinada aos interesses do governo do “grande irmão do norte”, que os membros da força tarefa encarregada de desvendar os crimes praticados em torno, e contra a maior empresa nacional, foram “capacitados”. Evidentemente, em troca do aprendizado da metodologia aplicada na famosa operação – ela mesma concebida e desenvolvida a partir de conceitos e critérios vigentes naquele país – o Departamento de Estado passou a compartilhar todas as informações apuradas, relativamente à Petrobras e às empreiteiras que com ela atuavam, inclusive na pesquisa e extração de gás e óleo da camada do pré-sal.

Interessante, a propósito, recordar que alta autoridade daquela pasta, em vídeo que circulou recentemente na internet, explicou com detalhes o mecanismo de compartilhamento de informações usado pela mesma e os membros do sistema de justiça federal brasileiro – citando especialmente os procuradores da “lava jato”. O método, sintomaticamente denominado de “confiança”, permite que os investigadores dos dois países compartilhem informalmente os dados resultantes de suas apurações, sem necessidade de observar o protocolo vigente em decorrência das normas de direito internacional – que exigem a intermediação dos órgãos de administração e de representação diplomática das nações. Segundo explicou o procurador ianque, somente depois de já compartilhadas as informações e obtidos os resultados desejados com as investigações, cuida-se então de atender aqueles trâmites legais, tratados, destarte, como meras formalidades a serem observadas “a posteriori”.

Não estranha assim, que esta relação “carnal”, para usar a expressão cunhada por ex-governante sul-americano, com os órgãos governamentais daquela que é, ainda, a maior potência mundial, tenha redundado no projeto de fundação privada, formada com dinheiro público, a ser gerida pelos procuradores da notória força tarefa – qual um prêmio por sua aplicada atuação em favor dos interesses nada altruístas de seus mentores estrangeiros.

De resto, as circunstâncias sob as quais se tentou implementá-la, parecem a princípio ideais à adoção de medida tão ilegal, quanto nociva à própria democracia – já que se pode bem imaginar as finalidades às quais se destinaria a pretendida organização. Com efeito, o atual momento vivido por nosso desditoso país, é altamente favorável à submissão aos poderosos de fora: bem o demonstra a sabujice de quem deveria se portar como seu primeiro mandatário, e prefere se prostrar alacremente aos pés do chefe do Império.

Apesar disso, espera-se que o Supremo consiga resistir aos ataques sórdidos que vem sofrendo, em virtude de finalmente reagir aos abusos inaceitáveis praticados em nome do combate à corrupção, e mantenha a decisão singular provisória que impediu, por ora, a constituição da inédita fundação privada ministerial.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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