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7 de fevereiro de 2019
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15:57

O Admirável Brasil Novo

Por
Sul 21
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O Admirável Brasil Novo
O Admirável Brasil Novo
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Neste momento, já transcorrido o primeiro mês de 2019 – passado, pois, o turbilhão do ano anterior, que desembocou na eleição de Bolsonaro, seguida da posse do novo governo e de seus primeiros movimentos – o relativo distanciamento temporal permite uma reflexão mais serena sobre tudo o que ocorreu nos últimos meses.

A rigor, apesar do impacto tremendo – no Brasil e o mundo – da eleição do truculento capitão reformado, não se pode dizer que houve surpresa, ao menos, para a minoria melhor informada, em especial, aqueles comprometidos com as lutas pela afirmação dos direitos de cidadania e consolidação da democracia. Para esta pequena, mas ativa parcela esclarecida da população, o episódio eleitoral significou o último ato do golpe – concebido após a eleição de Dilma, em 2010, impulsionado com as “manifestações” de 2013 e desfechado em 2016, com sua deposição ilegítima e a assunção de um governo-tampão, encarregado de desencadear a agenda de retrocessos em todas as áreas em que o país avançou sob os governos petistas.

Era evidente para estes, os que tinham a consciência do processo em andamento, que seus idealizadores e beneficiários – o sistema financeiro globalizado e os rentistas, de fora e de dentro do país, que há tempos capturaram o Estado pelo mecanismo perverso da dívida pública – bem como seus fiéis acólitos no parlamento, na mídia e no sistema de justiça, não botariam tudo a perder permitindo a volta de Lula ao poder, como indicado por todos os prognósticos eleitorais, caso disputasse o pleito.

Assim, sua prisão e consequente impedimento de concorrer, já sinalizavam o desfecho inevitável do roteiro preconcebido – apesar do engenho do líder encarcerado em articular a candidatura de Haddad e Manuela no devido tempo político, e dos ingentes e comoventes esforços de parte expressiva do eleitorado em levá-la adiante, com o apoio de 47 milhões de votantes.

A surpresa, pois, deu-se no periférico – não no essencial. De fato, os verdadeiros donos do poder venceram, mais uma vez; mas o títere que colocaram no Planalto não foi o seu preferido – o candidato tucano, depenado em pleno voo pela incontrolável cruzada moralista levada a cabo nos últimos anos, fruto da deletéria associação da mídia oligopolizada e a fração partidarizada do sistema de justiça federal.

Sobrou o tosco militar da reserva remunerada, deputado inexpressivo há trinta anos – e que, apesar disso, a bem-sucedida campanha, urdida desde o exterior, usando os mesmos artifícios da internet que elegeram Trump e o Brexit, vendeu à massa ignara e manipulada como “candidato antissistema”. Aliás, a hipótese de ter que apelar ao capitão retirado para completar seu projeto, traçado tão cuidadosamente, não fora negligenciada pelo pessoal da avenida Paulista e adjacências: a entusiástica participação de Paulo Guedes, homem do sistema financeiro, na empreitada de Bolsonaro, e a recepção eufórica que este recebeu em encontros com industriais e empresários do agronegócio, durante a campanha eleitoral, eram  sintomas claros da viabilidade do plano alternativo em apoiá-lo, no caso de manter-se a inércia de sua opção preferencial junto ao eleitorado.

Portanto, mesmo chocados, não se pode dizer que os derrotados do último pleito presidencial foram surpreendidos de todo: com efeito, depois do nebuloso episódio da facada – curiosa ferida cortante no ventre que não produziu hemorragia – as intenções de voto do candidato fascista subiram ao inédito patamar de quase um terço do contingente de eleitores, mantendo-se desde então sempre em viés de alta.

O resultado é que, ultrapassado o terrível desenlace do golpe – sua unção pela via eleitoral – os opositores dos novos governantes, e mesmo os conservadores mais racionais (e talvez arrependidos), tiveram que suportar a gradativa imersão do país em uma distopia simplesmente impensável há alguns anos. E agora, melhor do que buscar culpados, ou exercitar-se em profecias do acontecido, é entender o governo recém-instalado e seus propósitos reais – mais além das peripécias da nova família real e seus bufões.

Para tanto, e como destacado alhures, importa discriminar os três níveis de poder em que se distribuem os novos dirigentes e, sobretudo, os diferentes papéis que lhes cabem, e que já vêm exercendo. Como mostrou o primeiro mês de governo, há uma agenda prioritária, de cunho econômico e político: a continuidade do processo de entrega do patrimônio nacional, em especial, das riquezas naturais – a começar, pelo pré-sal; de transferência dos serviços públicos e empresas estatais aos agentes privados, daqui e de fora – de que o exemplo mais eloquente é a venda, ou melhor dizendo, a doação da Embraer à Boeing. E também o aprofundamento das restrições e, mesmo, supressão dos direitos sociais e econômicos – completando a odiosa reforma trabalhista iniciada no período temeroso, e procedendo à reforma da previdência, ávido desejo da banca internacional.

Deste primeiro, e mais importante âmbito de poder, encarregam-se Paulo Guedes e sua turma. A propósito, e não por mera coincidência, oito dos nove mais importantes cargos das áreas da fazenda e do planejamento – reunidas e entregues ao financista, ora “super-ministro” – continuam sob a direção dos mesmos responsáveis no governo anterior (apenas o presidente do BACEN, por seu desejo pessoal, não permaneceu no posto). Seria o caso de dizer-se que “… em time que está ganhando, não se mexe…”?

A segunda esfera, é a de Moro, o outro “super” do Bolso: sua escolha, além de desmascarar de vez o caráter persecutório e parcial das investidas judiciais que comandou contra Lula – destinadas, como se sabia, e ficou escancarado agora, a prendê-lo e evitar que concorresse à Presidência da República – implica a preparação e o inevitável desencadeamento da mais formidável repressão aos movimentos sociais, bem como aos setores populacionais mais vulneráveis aos inexoráveis efeitos das políticas econômicas recessivas e de exclusão, já em curso.

Cabe lembrar, a respeito, que a distopia tupiniquim ora inaugurada tende a reproduzir entre nós, cerca de quarenta anos depois, o quadro tenebroso criado nos anos 80 do século passado nos EUA, pelo chamado “reagonomics”: como as políticas neoliberais produzem, necessariamente, retração econômica e desemprego – que trazem, também como necessárias sequelas, anomia social e aumento da violência – o Estado trata de reprimir duramente os segmentos da população continuamente excluídos da produção, do consumo e dos benefícios sociais. Este processo, que os estudiosos chamam de “criminalização da marginalidade”, vem sendo aprofundado no Brasil desde a eclosão do golpe em 2016, mediante a paulatina desmontagem dos mecanismos de inclusão desenvolvidos nos governos de Lula e Dilma – e a resposta repressiva, violenta e descontrolada, a encargo do super-herói da “República de Curitiba”, só vai piorar o cenário pavoroso em que vivem, ou apenas sobrevivem amplas parcelas marginalizadas do povo, nas periferias e morros das grandes e médias cidades brasileiras.

O terceiro círculo do poder bolsonariano é aquele entregue à condução do próprio mandatário eleito. A seu respeito, aliás, cumpre lembrar que não se trata o mesmo de uma “persona”, construída artificialmente com propósitos políticos: sem embargo da articulação discursiva tecida ao redor de sua figura pública, ele é efetivamente um bronco, incapaz de exercer as funções de liderança e articulação necessárias ao desempenho do poder nos dois primeiros níveis referidos acima.

Resta-lhe, assim, continuar cumprindo o papel que vem desempenhando há anos – e que foi habilmente usado para interpelar e mobilizar expressivos contingentes da população brasileira, em especial junto aos extratos médios baixos e aos setores emergentes da pequena burguesia. Desde o centro do picadeiro, à sombra das goiabeiras e dos púlpitos dos templos, o “mito” continuará regendo sua banda de bobos da corte, entre lunáticos e imbecis, alardeando diuturnamente as mais absurdas diatribes, amplamente repercutidas pelas ditas redes sociais – contra esquerdistas, artistas e cientistas.

Além de seu caráter claramente diversionista, esta “guerra cultural” de que se ocupam o próprio Bolsonaro e alguns de seus patéticos auxiliares, é fundamental para manter a o apoio e a coesão do núcleo mais fiel de seu eleitorado – cerca de um quinto da população, que as pesquisas mostram que partilham de suas crenças homofóbicas, racistas e misóginas.

Diante disso, sem perder de vista a relevância do combate ao discurso da barbárie instalada, a tarefa central a que se deve dedicar a resistência organizada da cidadania brasileira, deve visar as políticas entreguistas e recessivas, para cujo aprofundamento os novos governantes foram guindados ao poder, e às quais já vem se dedicando com empenho. E, da mesma forma, fazer frente às tentativas de criminalização dos movimentos sociais e ao incremento da repressão brutal a que vêm sendo submetidos os segmentos desfavorecidos – em especial, jovens pobres e negros, habitantes das periferias.

A demora da sociedade civil e dos partidos da oposição em organizar esta resistência, e em torná-la firme e eficaz, fará de 2018 mais um ano de nossa história que não terminou.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


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