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26 de outubro de 2018
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00:34

Entre democracia e ditadura

Por
Sul 21
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Entre democracia e ditadura
Entre democracia e ditadura
Apresentação teatral, em Porto Alegre, sobre os desaparecidos e mortos na ditadura militar. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Em época de eleições – sobretudo de uma tão importante a que está em curso – parece mais que oportuno lembrar que, muito embora sejam essenciais à democracia, esta não se resume àquelas. De fato, embora consistam na sua reafirmação constante e renovada, a vida democrática não se limita aos episódios periódicos de escolha dos governantes e representantes do povo nos parlamentos.

Tais escrutínios realizam o aspecto processual do sistema democrático – que se expressa também em outra dimensão, de igual magnitude, relativa ao seu conteúdo propriamente dito: a expansão e legitimação contínua dos espaços de decisão política. Assim, a democracia não é apenas processo – método de escolha de representantes, por meio de disputas sob regras públicas, conhecidas e aceitas pelos concorrentes – mas tem também um caráter substantivo – como mecanismo de garantia e ampliação da participação da população, direta ou indiretamente, na definição de seus destinos na esfera pública.

A propósito, é interessante notar que as grandes revoluções liberais burguesas, que moldaram as principais democracias contemporâneas, foram precedidas ou acompanhadas de intensa elaboração teórica sobre as novas formas de organização do estado e suas instituições, bem como de suas relações com a sociedade civil complexa que emergia daqueles movimentos. Assim, antes, durante e depois das Revoluções Inglesa, Americana e Francesa, ao longo dos séculos XVII a XIX, os estados nacionais surgidos no Ocidente, nos albores da era moderna, passaram a se organizar sob os marcos da divisão dos poderes; do poder constitucional; dos direitos civis e políticos; e da democracia liberal.

Posteriormente, já no século passado, a teoria política liberal sofreu o influxo da pressão das demandas das novas classes trabalhadoras, resultantes do processo de industrialização – cuja assimilação jurídica e política resultou nas social-democracias, ainda hoje vigentes nos países do centro do capitalismo.

Estas observações servem para estabelecer o contraponto com outro grande movimento revolucionário, que vem de comemorar um século e que, a exemplo dos antecedentes referidos, ajudou a definir a conformação política do mundo contemporâneo. Trata-se da Revolução Russa de 1917, a qual, ao contrário do que ocorreu com suas predecessoras, não foi antecedida por algum modelo teórico acerca da forma de organização estatal que dela surgiu. Aliás, a ausência de uma teoria de estado genuinamente socialista, em bases marxistas, levou o grande líder revolucionário russo a esboçar, em “O Estado e a Revolução”, um modelo político “ad hoc”, brotado e esboçado em vista das vicissitudes conjunturais daquele país, e daquele momento histórico.

Cabe ressaltar aqui que as esquerdas sempre se ressentiram, e ainda se ressentem muito dessa lacuna teórica. No caso brasileiro – a exemplo do que ocorreu em outros países, por razões similares ou não – a amarga experiência da ditadura militar imposta em 1964, fez com que a maioria das pessoas deste espectro político-ideológico abandonasse a tradicional, e equivocada concepção das instituições liberais como meras “liberdades formais”, instrumentos precípuos da dominação burguesa.

Efetivamente, a supressão brutal das liberdades públicas e a repressão criminosa infligida aos opositores – reais, potenciais ou imaginários – do regime ditatorial, que vigorou por mais de vinte anos, e que ainda hoje apresenta sequelas entre nós, certamente contribuiu para a visão que hoje predomina na esquerda brasileira – no rumo da construção democrática do socialismo democrático, na linha preconizada, entre outros, pelo grande Norberto Bobbio.

E, em que pese todas as armadilhas embutidas no processo democrático vivido no Brasil há trinta anos – desde o presidencialismo de coalizão até o cretinismo parlamentar, passando pela atuação descontrolada do oligopólio midiático e a odiosa tutela implícita do poder militar – por ironia, são os partidos situados do centro à esquerda que defendem as bandeiras do liberalismo político. Mais do que isso, as experiências de governo conduzidas por estas agremiações – PT, PDT, PSB e PC do B – revelam que seus integrantes, no exercício do poder político, em todos os níveis, respeitaram e fizeram respeitar, escrupulosamente, os princípios da vida democrática.

Esta situação, aliás, se repete atualmente fora do país: na Europa e nos EUA, na África e na Ásia, as pessoas e grupos de orientação social progressista estão arrostando a ofensiva brutal da globalização financeira e monopolista, cuja expressão política é a “democracia de baixa intensidade”, a que se refere Boaventura de Sousa Santos. Ou ainda, para usar outro termo, também consagrado, de Cláudio Aganben, a “exceção”, caracterizada pela situação institucional imposta por sobre os estados nacionais, capturados pelo capital financeiro especulativo – situação esta em que os direitos e garantias, individuais e coletivos, mesmo sem ruptura formal com a ordem constitucional, ficam em “suspensão”, com a consequente legitimação da repressão seletiva a grupos e movimentos sociais que se opõem às classes dominantes.

Pois é nesse quadro que os brasileiros e brasileiras somos chamados a decidir no próximo domingo, entre, de um lado, um candidato de centro-esquerda, apoiado pela grande maioria de partidos, movimentos e grupos democráticos da sociedade civil; e de outra parte, um aspirante ao poder declaradamente fascista, que há anos brande sua agenda de ódio, saudosista da ditadura, homofóbico, xenófobo e misógino.

Muito já se falou e escreveu, até mesmo neste espaço, sobre as múltiplas e complexas razões que levaram parcela expressiva do eleitorado brasileiro a apoiar esta candidatura, e não cabe aqui reproduzi-las – mas apenas destacar que, certamente, a maioria destas pessoas não é adepta do fascismo, malgrado tenham sido cativadas pelo discurso político que articula em seu favor o medo, a insegurança e o anti-petismo cultivados há décadas pela mídia oligopólica.

O que interessa sobremodo salientar neste momento, às vésperas dessa eleição singular, é que nela não se decidirá apenas sobre dois projetos políticos, diversos e antagônicos (o que já não seria pouco): o que está em jogo é a reversão da democracia de baixa intensidade a que estamos submetidos, desde o afastamento ilegal da Presidenta da República, em 2016 – ou sua continuidade e aprofundamento, com iminente risco, inclusive, da adoção de regime explicitamente ditatorial.

Dito de outra forma, nós optaremos neste domingo pela volta da democracia, ou pelo aprofundamento da ditadura – em qualquer de suas formas. Ou, mais claro ainda: entre o retorno à convivência civilizada e pacífica, nos marcos da democracia liberal; e a legitimação das dominações colonial, classista e de gênero.

Em suma: entre civilização e barbárie!

(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


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