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11 de setembro de 2018
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18:01

Visitando Abuelas de Mayo: uma charla com D. Estela de Carlotto

Por
Sul 21
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“Qualidades não faltam a esta mulher extraordinária, verdadeiro exemplo de vida”. (Fotos: Maria Etelvina Guimaraens)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Em agosto de 1984, em viagem à Argentina, eu e minha mulher tivemos a atenção chamada, na Plaza de Mayo, por um grupo de senhoras idosas que distribuíam panfletos sobre sua busca pelos filhos retirados de suas filhas e noras, presas e desaparecidas pelos agentes da ditadura instaurada naquele país em 1976 – e que recém findara, há menos de um ano. Impressionados, fomos ao endereço indicado no panfleto que recebemos de uma delas, e encontramos então, no primeiro andar de um edifício simples da “calle Uruguay”, perto do Congresso argentino, a primeira e acanhada sede das “Abuelas de Plaza de Mayo”, como passaram a ser conhecida nas décadas seguintes, no mundo inteiro, por seu extraordinário e exitoso trabalho.

Eu não podia imaginar então que, quarenta anos depois, já na condição de membro da Comissão Estadual criada para auxiliar os serviços da Comissão Nacional da Verdade, estando novamente em férias naquele vizinho país, viria a assistir comovido, como a imensa maioria do povo argentino, a entrevista concedida ao vivo pela Presidenta daquela entidade, D. Estela de Carlotto, para apresentar seu próprio “nieto” – àquela altura a 112ª pessoa identificada como um dos recém-nascidos arrancados de seus pais, sequestrados e mortos durante o terrível período do chamado terrorismo de estado! Ela, que liderara com coragem e firmeza, em momentos duríssimos e em circunstâncias totalmente desfavoráveis, o movimento que ensejou a centenas de famílias e jovens a felicidade de se reencontrar, recuperar sua verdadeira identidade e revelar a terrível história dos crimes contra a humanidade cometidos durante o regime fascista argentino – estava então recebendo a justa recompensa pessoal por sua incessante luta!

Agora, passados mais quatro anos, graças aos contatos mantidos com “Abuelas” por intermédio de Raul Ellwanger, incansável militante por memória, verdade e justiça, pudemos visitar a sede da organização, como eu pretendia e não pudera na viagem anterior. Fomos recebidos amavelmente pela própria D. Estela, a quem entreguei uma cópia do resumo dos relatórios dos trabalhos realizados por nossa Comissão, entre 2012 e 2014.

Durante o encontro, que durou cerca de uma hora, a anfitriã nos falou das múltiplas atividades desenvolvidas pela associação – a qual, além da sede principal, amplo escritório em edifício do bairro tradicional de Montserrat, conta com um consultório psicológico em Buenos Aires, e mais duas sucursais fora da cidade. Trabalham nela, ao todo, noventa e nove pessoas, distribuídas em treze equipes técnicas, compostas por advogados, psicólogos, assistentes sociais, médicos, antropólogos, comunicadores e pessoal administrativo.

Para a consecução das diversas e complexas tarefas que a tornaram referência internacional na defesa e promoção dos direitos humanos, “Abuelas de Plaza de Mayo”, por força de decreto legislativo, recebe verba pública precipuamente destinada no orçamento nacional – e desde 2015, com a assunção do atual governo neoliberal, a cada ano é necessário encetar dura discussão quando da aprovação da lei orçamentária, basicamente em torno da reposição inflacionária. Graças à sua forte capacidade de mobilização e negociação, e seu enorme prestígio internacional, mesmo com a má-vontade dos burocratas de Macri, a instituição vem conseguindo manter os recursos sem os quais não poderia continuar realizando suas ações.

Estima-se em mais de cinco mil o número de pessoas desaparecidas na Argentina durante a ditadura.

Situação bem diferente daquela vivida durante os governos “K”, de Néstor e Cristina Kirchner, a quem D. Estela elogia pela prioridade explícita por eles dada aos temas relativos à justiça de transição. De fato, foi no governo do primeiro que, entre tantas outras medidas, foram criados o Arquivo Nacional e o Museu da Memória, instalados onde funcionou a famigerada “Escuela de Mecânica de la Armada”, a ESMA, o maior dos tenebrosos centros de detenção e tortura do regime ditatorial criminoso imposto aos argentinos entre 1976 e 1983 – por onde se estima tenham passado cinco mil pessoas desaparecidas, além de milhares de outros cidadãos argentinos presos e torturados por seus agentes no período.

Além disso, durante aquelas administrações foram proporcionadas as condições, técnicas e políticas, para que as instituições do sistema de justiça pudessem atuar com plenitude e eficiência – dentro do marco constitucional e assim asseguradas as garantias de defesa, contraditório e devido processo legal – no sentido de responsabilizar, pelos crimes lesa humanidade então cometidos, toda a cadeia de comando da repressão, de presidente da república a guarda de esquina, fato que torna a Argentina modelo para o resto do mundo nesta área.

Dona Estela lamenta que, desde 2015, com a assunção do governo neoliberal de Maurício Macri, tenha havido um refluxo, não apenas nas políticas públicas voltadas à recuperação da memória histórica sobre os crimes da última ditadura militar em seu país, mas no próprio comportamento de legisladores e agentes do sistema de justiça – em inequívoca direção no rumo do abrandamento das punições aos criminosos condenados, e até mesmo de sua impunidade.

Daí a importância da continuidade do trabalho feito por “Abuelas” – que dias antes acabara de apresentar ao país o “nieto 128”, Marcos Eduardo Ramos, separado há quarenta e dois anos de sua mãe, ainda desaparecida. E da mobilização permanente da cidadania organizada em defesa da entidade, cujos quarenta anos de existência foram comemorados em uma grandiosa festa no começo de agosto, com a presença de cerca de setenta mil pessoas.

O prestígio institucional da associação liderada por esta mulher dinâmica e incansável – que aos 86 anos vem todos os dias desde La Plata, há cerca de 60 quilômetros da capital federal, para cumprir agenda intensa – tem levado dezenas de sindicatos e organizações da sociedade civil, além de milhares de cidadãos e cidadãs, a indicá-la para o Prêmio Nobel da Paz deste ano, em campanha que mobiliza toda a Argentina. Tal premiação faria justiça à dedicação de quem, há quatro décadas, vem lutando exitosamente, não apenas para encontrar quem foi retirado, criminosa e brutalmente, de seus pais, como também, e sobretudo, para a reconstrução da identidade das vítimas – tarefa espinhosa, a exigir paciência e sensibilidade.

Qualidades que não faltam a esta mulher extraordinária, verdadeiro exemplo de vida, que mesmo preocupada com os lamentáveis retrocessos vividos nos últimos anos na América Latina, mostra-se hoje, como antes, disposta a continuar sua procura infatigável pelos “más de 300 nietos que aún nos faltan”.

Longa vida a “Abuelas de Plaza de Mayo” e a D. Estela de Carlotto!

(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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