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24 de agosto de 2018
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01:06

O país de Bolsonaro

Por
Sul 21
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O país de Bolsonaro
O país de Bolsonaro
Em São Paulo, caminhão de som repleto de faixas pede intervenção militar. (Reprodução/Facebook)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Qualquer que seja o resultado das eleições presidenciais que se avizinham, elas já estão marcadas por dois fatos inéditos na vida política brasileira – ambos de grande relevância e de consequências, hoje, ainda imprevisíveis. Trata-se, o primeiro, da persistência, mais que isso do contínuo crescimento da liderança das intenções de voto do ex-presidente Lula, o preferido de mais de um terço do eleitorado. De fato, mesmo preso há mais de quatro meses, em razão de incansável perseguição judicial, em típico caso de “lawfare”, internacionalmente reconhecido, e vítima da permanente tentativa de destruição de sua imagem por parte da mídia oligopólica, a cada nova pesquisa eleitoral cresce o número de cidadãos dispostos a votar nele – a ponto de, em algumas delas, ultrapassar com relativa folga a soma das indicações de todos os outros candidatos.

Tal fenômeno pode ter muitas explicações, mas certamente, dentre elas, avulta a memória recente do ótimo momento vivido pela maioria do povo brasileiro durante os dois mandatos presidenciais do líder pernambucano, e do primeiro da sucessora por ele indicada. Além disso, parece que a maior parte da cidadania passou a compreender, finalmente, que a terrível situação a que o Brasil vem sendo submetido nos últimos tempos, é efeito direto do golpe parlamentar desfechado em 2016 – que depôs ilegitimamente a Presidenta da República eleita dois anos antes, para colocar no poder o bando encarregado de desconstruir, uma a uma, as conquistas sociais, econômicas e culturais obtidas, sob a batuta de Luiz Inácio da Silva, na última década e meia.

Parece lógico, assim, que esta compreensão leve à preferência manifestada por ele nas pesquisas eleitorais. Mais intrigante, no entanto, é a persistente posição, também registrada naquelas enquetes, por Jair Bolsonaro, que ocupa sempre o segundo lugar, quando o nome de Lula é sugerido, e que assume o primeiro lugar, quando este é retirado. De se destacar que esta é a preferência manifestada por cerca de um quinto dos consultados, há muitos meses, de forma consistente: a maioria das pessoas que se intitulam eleitoras do ex-capitão do Exército, declaram que não mudarão de voto, em hipótese alguma.

Este é, pois, o segundo acontecimento absolutamente peculiar a marcar a escolha, em breve, do próximo ocupante do Palácio do Planalto: a inclinação de expressiva parcela do eleitorado por um candidato de extrema direita, o qual, desde que ingressou na vida parlamentar, defende abertamente as bandeiras mais retrógradas – em favor do racismo, da homofobia, do machismo, inimigo manifesto dos direitos humanos. Cabe desde logo salientar que, malgrado o termo costume ser frequentemente mal empregado – designando as condições similares, mas distintas, de autoritário, conservador e/ou reacionário – o adjetivo de “fascista” serve perfeitamente para definir Bolsonaro.

A propósito, interessa lembrar aqui as argutas observações do grande Umberto Eco, em um dos seus magníficos “Cinco escritos morais”, para identificar o que ele chama de “fascismo eterno” – referindo-se, não exatamente à ideologia, ou ao tipo de estado fascista, mas antes a “…um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis” (in “O fascismo eterno”, op.cit., editora Record, Rio de Janeiro – São Paulo, 1998, p. 34). Segundo o notável pensador peninsular – o qual viveu, ele próprio, em sua infância, sob o prototípico regime fascista de Mussolini – aquilo que ele denomina de “ur-fascismo”, ou seja, o fascismo original, mas que pode se reproduzir em qualquer parte e a qualquer tempo, apresenta algumas características que, uma vez reunidas de forma prevalente, o distinguem de demais expressões de direita autoritária.

Assim, de acordo com ele, estas são as principais marcas distintivas do fascismo – e, por extensão, da personalidade fascista: o culto da tradição e o mito da raça superior; o desprezo à razão e à cultura; o amor à ação e à força; o menosprezo aos direitos humanos e à democracia; o racismo, a misoginia e a homofobia. Deve-se acrescentar ainda, a esses traços típicos do fascismo, o radical anticomunismo, ou de modo geral, o anti-esquerdismo absoluto.

À luz destas considerações, não é difícil perceber no militar reformado que aspira à chefia da nação, com o apoio irrestrito de um número considerável de brasileiros – inclusive pobres, negros e, até mesmo mulheres (!?…) – todos estes sinais inconfundíveis. Basta lembrar algumas das barbaridades que disse, e cometeu ao longo de quase três décadas de atividade política, defendendo o estupro e a tortura; atacando mulheres e negros; ofendendo militantes sociais e pessoas de esquerda; propugnando a morte de criminosos e a castração química de acusados de delitos sexuais; e declarando-se frontalmente contrário aos direitos humanos e a favor da ditadura militar, a que aconteceu e aquela que gostaria que acontecesse de novo…

Não resta dúvida, pois, quanto ao caráter fascista de Bolsonaro, bem como de boa parte de suas propostas como candidato. Apesar disso, ou melhor, por isso mesmo sua candidatura despontou e segue firme, na dianteira das intenções de voto junto ao espectro político de direita – para horror das parcelas da população comprometidas com o humanismo, os direitos humanos e as prerrogativas da cidadania, ou simplesmente, as pessoas de bom senso. As próprias classes dominantes, os verdadeiros donos do poder – bancos, grandes corporações e rentistas – não confiam em um candidato com este perfil, e continuam desesperadamente, e até agora em vão, tentando construir uma alternativa direitista pretensamente “civilizada”, cinicamente apontada como sendo “de centro”.

Para entender o significado da força eleitoral demonstrada pelo truculento capitão da reserva, é preciso recordar o desencadeamento da agenda retrógrada, verdadeira “caixa de Pandora” aberta após o golpe de 2016, o que só foi possível graças à bem sucedida articulação política procedida, nos anos imediatamente anteriores, sob a liderança de Eduardo Cunha – unindo no Congresso as bancadas apelidadas de “BBB” (boi-bala-bíblia), formando o que se tem chamado mais recentemente de “centrão”, sucessor do antigo “baixo clero”.

Com efeito, a união destas facções parlamentares, que trabalham ativamente em torno das demandas mais reacionárias, foi decisiva no processo de derrubada ilegal da Presidenta Dilma; e continua o sendo, depois da assunção do sucessor ilegítimo e seus comparsas, na tarefa de destruição dos avanços sociais e econômicos, políticos e culturais, registrados nos governos petistas – e, inclusive, de antigas e aparentemente consolidadas conquistas civilizatórias, que nem mesmo os ditadores militares se dispuseram a extinguir, como os direitos trabalhistas.

Jair Bolsonaro, que tinha marcado há tempos sua presença no cenário político nacional, como arauto de muitas das bandeiras ora desfraldadas pelos golpistas e seus apoiadores, assumiu assim, quase “naturalmente”, a condição de porta-voz do projeto fascistóide no próximo pleito eleitoral. Ao observador mais atento da realidade, no entanto, não passará despercebido que a pauta por ele defendida já vem sendo implantada em nosso desditoso país há algum tempo, ganhando especial incremento desde que os usurpadores chegaram ao poder pela via golpista.

Efetivamente, este é o país em que “bandido bom é bandido morto”: somente no ano de 2017 as polícias brasileiras mataram 5.144 pessoas (quase quinhentas ao mês, mais de cem por semana)! Em que se prende muito, e mal: também naquele ano o país registrou cerca de 730.000 cidadãos e cidadãs encarceirados, sendo quase quarenta por cento presos provisórios, ou seja, sem julgamento! Ainda no mesmo ano, o Brasil registrou o recorde de mortes violentas: 63.880 vítimas letais, o que importa na taxa, também recorde, de 30,8 a cada 100.000 habitantes, índice muito alto, que aponta crescimento anual de 2,9% !

Todos estes são dados oficiais e recentes, extraídos da última atualização do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que acaba de ser publicado. Por eles se verifica, também, que o estupro de mulheres – crime explicitamente admitido, senão defendido pelo candidato fascista – atingiu em 2017 a espantosa cifra de 60.018 registros, o que importa em crescimento 8,4º em relação ao ano anterior! Também foram registrados 221.238 casos de violência doméstica, ou seja, 606 registros por dia!

A situação dos direitos humanos, que já era problemática – apesar dos esforços dos governos anteriores, e de diversas entidades da sociedade civil, em efetivá-los, inclusive por meio de políticas públicas – tornou-se simplesmente dramática. Não bastasse o desmonte dos investimentos em saúde, educação e cultura, com a imposição da famigerada PEC do limite dos gastos públicos, a perseguição criminosa a pessoas e grupos ligados às causas da cidadania, com o silêncio, senão apoio explícito das autoridades, foi desatada em todo território nacional. Em conseqüência, aumentaram expressivamente as mortes de militantes sociais, de que o caso de Marielle Franco é apenas o exemplo mais evidente, de integrantes da comunidade LGTB, além da violência desenfreada contra índios, quilombolas e camponeses engajados na luta pela terra.

Podia-se continuar referindo aqui, ainda, as tentativas de implantação do “escola sem partido”, tão ridículo quanto perigoso; os ataques policiais e judiciais seletivos contra professores, universidades e ativistas sociais, por sua atitude crítica contra o golpe e os golpistas; a entrega das riquezas nacionais, sem qualquer escrúpulo; enfim, a todos os pontos da agenda de retrocesso a que o país vem sendo submetido – e que realizam, certamente, já na prática presente, o projeto político defendido por Bolsonaro.

Sua eventual eleição, no entanto, importaria bem mais do que na mera continuação de um estado de deterioração do país, em todos os níveis, em curso desde que o golpe foi desencadeado, dois anos atrás – pois teria o significado, político e simbólico, da legitimação de seu projeto fascista por parte da população brasileira.

Como se vê, não é pouco o que está em jogo nos próximos meses: a sobrevivência mesma da democracia e da vida social sob parâmetros civilizatórios mínimos.

(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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