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23 de março de 2018
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12:36

A intervenção militar no Rio e a execução de Marielle

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Sul 21
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A intervenção militar no Rio e a execução de Marielle
A intervenção militar no Rio e a execução de Marielle
Militares em operação na favela da Rocinha. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Carlos Frederico Guazelli (*)

Não há como deixar de ligar a estúpida morte da vereadora Marielle, e do motorista do carro que a conduzia, na noite de 14 de março, no centro de sua capital, à intervenção militar no estado do Rio de Janeiro, decretada quase um mês antes pelo usurpador da Presidência da República. Não se trata de uma relação de causa e efeito, pois não se pode afirmar, com segurança, que as vítimas não seriam mortas, se o comando da segurança pública daquele estado não fosse entregue pelos golpistas ao Exército Brasileiro. Mesmo assim, a conexão entre os dois fatos se apresenta claramente a quem busca refletir com mais cuidado sobre seus significados e consequências. Senão, vejamos.

Primeiro, há que se ressaltar que os motivos invocados pelos governantes ilegítimos para a adoção de medida tão drástica, não passam de meros pretextos sem fundamento, brandidos para tentar ocultar sua verdadeira finalidade – criar uma nova pauta política, visando a sustentar seu (des) governo até o final, diante do fracasso em fazer passar a reforma da previdência, talvez a principal tarefa para a qual foram instalados ilicitamente no poder, em 2016.

De fato, pretextou-se como justificativa para a violência institucional praticada contra aquela unidade da Federação, a situação “descontrolada” da criminalidade, ali alegadamente existente. Ora, se é verdade que sua população sofre, há muitos anos, com a insegurança, o mesmo acontece em todo o país, e os índices e estudos sobre a matéria evidenciam que o número de crimes, especialmente de mortes (homicídios e latrocínios) ali praticados, mesmo preocupante, é menor, em alguns casos, bem menor do que o verificado em outros estados.

É sabido, também, que a violência a que cariocas e fluminenses vêm sendo submetidos nas últimas décadas, deve-se, de um lado, ao chamado “crime organizado” – na verdade, as quadrilhas de traficantes de drogas, instaladas nos morros e periferias das cidades; e de outro, aos próprios agentes estatais que deveriam protegê-los – policiais civis e militares, além dos famigerados “milicianos”, como são chamados os membros, recrutados nas polícias, das falanges criminosas contratadas pelos comerciantes locais, para reprimir criminosos, reais ou potenciais.

Também é notório que aquele estado – assim como ocorreu com outros – tem recorrido regularmente a tropas federais, inicialmente, da Força Nacional de Segurança e, depois, em várias ocasiões, das próprias Forças Armadas (Exército e Marinha). São as tais operações, iniciadas ainda nos governos legítimos, destinadas a garantir a lei e a ordem (GLO), de duvidosa constitucionalidade. E de resultados induvidosamente pífios.

Com efeito, os estudiosos do tema já demonstraram há muito tempo, com base na experiência histórica, que o emprego de corporações militares é absolutamente impróprio para a contenção e o controle da criminalidade, especialmente nas grandes e médias aglomerações urbanas. E isto pela razão básica de que soldados e tropas são treinados para a guerra, em decorrência do que, trazidos para ocupar territórios, como acontece com as periferias das cidades, necessariamente atuam ali sob a lógica bélica – encarando as populações dos locais ocupados como potencialmente inimigas. Assim, como sempre ocorre em se tratando de conflitos armados, quem mais sofre são os civis: o resultado inexorável de tais ocupações é o cometimento de abusos contra os habitantes das comunidades, incluindo prisões ilegais, tortura e morte – sem que os bandos criminosos sejam desbaratados.

Os próprios militares bem o sabem; não por acaso, várias autoridades da caserna expuseram seu desagrado com a convocação da força terrestre a uma tarefa para a qual não ela não é vocacionada. E, para se prevenir, já haviam obtido antes, do pressuroso Congresso Nacional, uma lei que passa à justiça militar a competência para apreciar e julgar os delitos que venham a ser cometidos durante as operações militares de segurança pública – com o que se atendeu, por ora, à vontade do Comandante do Exército, de que não sejam seus subordinados submetidos amanhã a uma Comissão da Verdade (sinal de que estas, ao contrário do que dizem seus detratores, fizeram bem seu trabalho…).

Por isso, inúmeras entidades da sociedade civil organizada, especialmente aquelas ligadas à defesa dos direitos humanos e de cidadania, vieram a público externar sua contrariedade contra tão desastrada providência – que, além de inócua aos fins propalados, configura-se altamente perversa para com o povo pobre das favelas e bairros das cidades fluminenses. Jovem liderança na luta pelo direitos das mulheres, e da população negra e favelada, ela própria egressa da Favela da Maré, onde nasceu e se criou, a vereadora carioca Marielle Franco, recentemente eleita pelo PSOL, com consagradora votação, foi uma das vozes críticas à intervenção, e acabara de ser guindada à presidência de comissão especial criada na Câmara de Vereadores local para acompanhá-la – o que, talvez, tenha sido decisivo para firmar sua sentença de morte.

Efetivamente, mesmo que não se possa ligá-la diretamente com a criminosa execução de Marielle, a intervenção militar no Rio de Janeiro constituiu uma gravíssima sinalização: a concessão de carta branca, um alvará antecipado aos violadores de direitos humanos, incrustrados nos aparatos de segurança do estado – que se sentiram, desde o golpe de 2016, e mais ainda agora, com o respaldo da presença das Forças Armadas, encorajados a eliminar fisicamente seus adversários, no centro da segunda maior cidade do país!

Resta apenas dizer que, sempre que um ativista dos direitos humanos é executado brutalmente, há na verdade dois crimes. Um, o homicídio consumado, na pessoa da vítima visada. Mas, não bastasse sua trágica irreparabilidade, existe embutido neste ato criminoso, um outro – este, um delito tentado: é que os autores, diretos e indiretos de tais homicídios, desejam também matar algo intangível, e isto é o que os move realmente, é o verdadeiro móvel de sua conduta delituosa. Sim, é a militância pelos direitos humanos, são os direitos humanos, em si mesmo, que eles querem matar, matando seus militantes.

Quando se matam líderes políticos que, como Marielle, lutam pelos moradores e moradoras das periferias de nossas cidades; ou fiscais do trabalho, que identificam situações análogas à de escravidão; ou integrantes dos movimentos dos camponeses sem terra; ou dirigentes e advogados de sindicatos rurais; ou lideranças indígenas e quilombolas, que atuam na defesa de suas populações; ou missionários, que defendem os humildes; ou ecologistas, que tentam salvar o ambiente – seus matadores visam, fundamentalmente, atingir as causas às quais estas vítimas se dedicam.

Mas, como dito, tais crimes, subjacentes a estas mortes, são sempre meras tentativas. Porque os direitos pelos quais estes lutadores morreram – à igualdade, à liberdade, à moradia, à terra, ao trabalho, ao ambiente sadio, à saúde, enfim, à vida humana digna – estes direitos sobrevivem aos seus mártires, e continuarão mobilizando as multidões deserdadas.

(*) Defensor Público aposentado, coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012/2014).


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