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22 de fevereiro de 2018
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14:15

A (in)justiça federal

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Sul 21
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A (in)justiça federal
A (in)justiça federal
“Filha da ditadura que é, a justiça federal carrega superlativamente todas as características do sistema judiciário brasileiro”. (Foto: Sylvio Sirangelo/TRF4)

Carlos Frederico Guazelli (*)

Conforme previsto neste espaço, ao final de artigo postado poucos dias antes, em 24 de janeiro último o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4) não apenas rejeitou a apelação interposta pela defesa do ex-Presidente Luís Inácio da Silva, contra a primeira sentença contra ele proferida no juizado federal de Curitiba, como ainda proveu o apelo da acusação – em razão do que restou ele agora condenado a mais de doze anos de reclusão. E, não menos importante, na iminência de ser preso – pois a decisão referida consigna, expressamente, que uma vez esgotados todos os recursos naquela instância, deve o réu ser recolhido à prisão para o cumprimento da pena que lhe imposta, em regime fechado.

Não era preciso ser pitonisa para prever tal desfecho: desde o início, Lula já estava condenado pela justiça, não bastassem as sucessivas condenações que lhe foram impostas desde seu nascimento – à fome, à miséria, à ignorância, as quais superou ao longo de sua extraordinária vida, mercê de suas qualidades excepcionais como ser humano. Antes e durante a tramitação desta, e das demais ações penais contra ele instauradas em Curitiba, sob a condução de magistrado celebrizado pela chamada grande mídia, seu resultado vinha sendo anunciado por inequívocos sinais – desde a tentativa canhestra de prendê-lo, sob o pretexto de condução coercitiva, até a violação criminosa de seu sigilo telefônico, de parte da autoridade encarregada, justamente, de zelar por sua inviolabilidade. E, depois da condenação em primeira instância, pela espantosa, e inédita declaração do próprio presidente do tribunal em que seriam julgados os recursos, acerca da natureza “irretocável” da sentença recém proferida, e que ele nem ao menos lera…

Condenar Lula, para assim impedi-lo de concorrer à eleição para a qual cada vez mais é o franco favorito; e depois prendê-lo, se possível expô-lo publicamente algemado, nas mãos e nos pés, para desta maneira matá-lo política e simbolicamente – este é o terceiro passo do golpe, iniciado em 2016 com a deposição ilegítima da Presidenta Dilma; e continuado com o desencadeamento, pelo governo usurpador, da agenda de retrocessos sociais, econômicos e culturais que, de outra forma, a população brasileira não aceitaria. Isso, hoje, é mais que sabido, até mesmo pela imensa massa dos cidadãos vidiotizados diuturnamente – e que começam a se aperceber do desastre ao qual o país foi levado, sob o pretexto do combate à corrupção: desemprego, retração econômica, fim dos programas sociais, aumento descontrolado da inflação e… mais corrupção!

O cenário escolhido para a destruição de Lula não poderia ser mais adequado. Uma pequena digressão histórica basta para melhor demonstrá-lo. Com efeito, criada nos albores do regime militar – pelo famigerado Ato Institucional n.º 2, ainda em 1966 – a justiça federal padece de insuperável pecado original. No ano seguinte, foi instituída, inicialmente nas capitais dos estados, com atribuições específicas: no âmbito civil, julgar as causas envolvendo a União e suas entidades autárquicas; e na esfera criminal, as ações penais por crimes cometidos contra “bens, interesses e valores dos entes federais” e os delitos políticos.

Neste particular, no entanto, o referido AI-2 previu a possibilidade de que a legislação especial atribuísse à justiça militar federal a competência para julgar e processar civis, acusados da prática de “crimes contra a segurança nacional” – o que veio a ocorrer efetivamente, também a partir de 1967. Interessante notar, pois, que a instituição judiciária autoproclamada, hoje, como instância moralizadora do país, encarregada de lhe extirpar a chaga da corrupção, tem sua origem no mesmo ato de força ilegítimo que lhe foi imposto, quatro décadas atrás, para acabar com a subversão…

Composta inicialmente por juízes e servidores nomeados pelo Presidente da República, a nova justiça foi sendo ampliada gradativamente, ao longo da ditadura e, sobretudo, após a redemocratização do país, com a edição da Constituição de 1988, que lhe deu novos contornos institucionais. Em artigo publicado em três partes, no ano que passou, nesta coluna, e intitulado “O Monstro”, teve-se oportunidade de expor como se deu, a partir da promulgação daquela Carta, o processo de contínua expansão das agências do sistema de justiça ali desenhado – mercê do avanço de suas insaciáveis corporações sobre o Estado brasileiro. Dentre estas, destacam-se sobremodo os estamentos federais do judiciário, do ministério público e da advocacia pública.

Como contrapartida ao tratamento privilegiado concedido aos seus integrantes, de parte dos sucessivos governos, com a chancela do parlamento, o comportamento institucional dos órgãos do sistema de justiça brasileiro – com as exceções de praxe – tem sido marcado notavelmente pelo conservadorismo. Conforme demonstrado, não apenas no referido artigo, mas também por inúmeros autores, tanto na área do direito quanto das ciências sociais em geral, a justiça brasileira se orienta, historicamente, pela legitimação da ordem desigual instituída, preservando os privilégios econômicos e sociais que infelicitam a maioria de nosso povo.

Os órgãos federais do sistema de justiça – nele considerados juízes e tribunais e, da mesma forma, os agentes do ministério público – destacam-se sobremaneira neste particular: na esfera cível, suas decisões, de regra, mantém e aprofundam a desigualdade social, na medida em que legitimam o estatuto da propriedade e o processo de acumulação financeira e fundiária; e no âmbito penal, criminalizam os movimentos sociais e dirigem, seletivamente, o arsenal repressor estatal contra os setores populares – marcadamente, os jovens, negros e pardos, habitantes das periferias das cidades grandes e médias.

Marcada indelevelmente por seu defeito de origem, filha da ditadura que é, a justiça federal carrega superlativamente todas as características do sistema judiciário brasileiro – a serviço das antigas e novas dominações, a começar pela de classe.

Não poderia haver, pois, pelourinho mais apropriado para o martírio do maior líder popular do Brasil.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).


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