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21 de março de 2021
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20:49

As mentiras da privatização da Corsan

Por
Sul 21
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As mentiras da privatização da Corsan
As mentiras da privatização da Corsan
Foto: Corsan/Divulgação

Antonio Escosteguy Castro (*) 

O Governador gaúcho, Eduardo Leite, anunciou há alguns dias sua proposta de privatizar a CORSAN, empresa estatal de água e saneamento no Rio Grande do Sul. Foi um choque, eis que durante sua campanha em 2018, o Governador se comprometera formalmente, inclusive com comerciais na TV, que não privatizaria a CORSAN e o Banrisul. Tal promessa, inclusive, foi fundamental para que o eleitorado de esquerda, que votara PT ou PDT no primeiro turno, sufragasse Eduardo Leite no segundo, em oposição a José Sartori. Poucas vezes em nossa história política um Governador teve a desfaçatez de quebrar uma promessa de campanha tão claramente formalizada e que foi tão decisiva na eleição como foi a de não privatizar a CORSAN.

Fica claro, então, que o privatizar a CORSAN não é uma medida que Eduardo Leite toma com vistas à política interna do Rio Grande, mas um recado que manda para o mercado financeiro nacional. Desde há alguns meses, Leite está buscando chegar no cenário nacional, apresentando-se para a chapa do PSDB em 2022, como presidente ou vice, e com este ato-símbolo de efetivar uma privatização que se comprometera a não fazer, comunica ao mercado e aos financiadores de campanhas nacionais que segue a cartilha privatista sem nada temer, e que rifará Petrobrás, Caixa ou até mesmo o Palácio do Planalto, se algum banco precisar uma agência na Praça dos Três Poderes.

Chama a atenção, também, que Leite anuncia esta medida, altamente polêmica, e que irá despertar um acirrado debate, exatamente no momento em que, se submetendo às pressões do empresariado, reabrirá o comércio e as atividades econômicas no Estado, ainda que nessa semana que passou tenhamos batido o recorde de mortes por COVID no Rio Grande, que chegaram a ultrapassar 500 num único dia. Há aqui outro recado importante ao mercado e ao empresariado: esta tática de criar uma grande polêmica pública para encobrir um ato político condenável e desviar atenção é exatamente como age Jair Bolsonaro. Leite avisa aos futuros parceiros que podem ter encontrado o sonho desta direita que se diz de centro e que quer retomar o governo em 2002: eis aqui o Bolsonaro que sabe usar talheres, que sabe jantar com grã-finos. O conteúdo é puro Paulo Guedes, mas não se usa palavreado chulo …

É evidente que um cavalo-de-pau deste porte na política não pode ser dado sem um discurso de justificação. E o discurso do Governo do Estado para justificar a privatização da CORSAN está eivado de mentiras e meias-verdades. A CORSAN é uma empresa eficiente e lucrativa. Se buscarmos a série histórica desde 2010, apresentou um lucro ( atualizado pelo IPCA-E) de mais de 10,9 bilhões! É um número muito expressivo. Há um ano atrás, ao firmar a PPP( parceria público-privada) com o Consorcio AEGEA ( paulista…), para atuar na Região Metropolitana , o Governador se dizia “entusiasmado” porque esta PPP traria 1,4 bilhões de investimento privado para o setor. E, agora, apenas um ano depois, diz que a empresa não consegue atrair investimentos? E não fica nem um pouquinho ruborizado?

Ademais, em fins de 2018, a CORSAN ganhou no STF o Recurso Extraordinário 342.314, que reconheceu a isenção da empresa em relação aos tributos federais e determinou sua restituição. Desde 1991! É, literalmente, uma montanha de dinheiro, que qualquer governo bem-intencionado usaria para alavancar o financiamento da empresa. A União deve bilhões à CORSAN. Para que vendê-la? Para dar este presente aos futuros acionistas privados?

Vamos adiante. Particularmente os dois últimos governos estaduais, por ações e omissões, agiram para piorar a situação da CORSAN. Para viabilizar a PPP da Região Metropolitana ( que paradoxalmente provou que a CORSAN mesmo pública é atrativa para o investimento privado) as administrações deixaram de utilizar mais de 650 milhões de reais de recursos do PAC , a fundo perdido. Isto mesmo: deixaram de usar dinheiro público, a custo zero, para buscar dinheiro privado. E menos de um ano depois, abandonam as PPPs e querem vender a empresa. Primeiro se sucateia, depois diz que não presta e tem de vender. Isto se chama sabotagem, pura e simplesmente, mas na melhor das hipóteses é a demonstração de uma brutal incompetência, de não saber o que fazer com a água e o saneamento básico em nosso estado.

E como sempre, culpam os trabalhadores. Primeiro, com o falso fantasma do passivo trabalhista. O passivo trabalhista da CORSAN está sob controle e diminuindo ano a ano, trimestre a trimestre. E beira a crueldade invocar os “altos salários” e os benefícios dos trabalhadores como responsáveis por qualquer coisa. A CORSAN é lucrativa, já vimos, e sua tarifa, nos parâmetros nacionais, é razoável. Se a empresa é lucrativa e a tarifa é módica, com que parâmetro pode se afirmar que os salários são altos? O lucro dos acionistas? E tem gente que diz que a luta de classes acabou… É incrível como “ especialistas”, colunistas e políticos que ganham 30, 40 e até 50 mil reais por mês têm facilidade de dizer que aqueles que ganham 3, 4 ou 5 mil ganham demais…

O fim da CORSAN pública afetará mais pesadamente os pequenos municípios e a população mais pobre. A grande maioria dos municípios do Rio Grande do Sul é deficitário para uma empresa de água e saneamento. Os investimentos ali são bancados pelo chamado “subsídio cruzado”, ou seja, o lucro dos grandes paga o investimento nos pequenos. Sob a lógica privada, só o que é lucrativo será priorizado. Lucro, afinal, é o objetivo da empresa privada. Também as vilas, favelas e locais mais pobres geram pouca renda e os custos nem por isso são menores. Haverá investimentos suficientes para quem dá prejuízo? É lógico afirmar que não.

Já há exemplos suficientes do fracasso da privatização da água. Aqui mesmo no Rio Grande do Sul, a cidade de Uruguaiana foi das primeiras a privatizar o serviço que era da CORSAN e não é um exemplo nem de eficiência nem de satisfação da população com o serviço. Manaus há quase 20 anos tem a água privatizada e é uma das piores cidades do ranking nacional em qualidade , eficiência, abrangência ou qualquer outro parâmetro que se analisar. Vender a CORSAN vai na contramão de toda a experiência mundial. Nos últimos 20 anos, mais de 1600 cidades de 45 países , entre elas Paris e Berlim, remunicipalizaram os serviços, face às deficiências do serviço privado. Leite é o Joãozinho do passo certo?

E tudo isto no meio da maior pandemia dos últimos 100 anos, em que nosso povo passa por sofrimentos nunca antes verificados em nosso país. O projeto do Governo Leite é entregar a empresa em outubro próximo, quando a pandemia do COVID ainda estará longe de ter terminado. Quanto sofrimento mais será agregado, até com a elevação das tarifas, algo que as empresas privadas sempre fazem?

A água não é uma mercadoria, é um bem público essencial para a vida na Terra. O saneamento básico é fundamental para a saúde da população. Não há justificativas políticas, técnicas ou mesmo morais para entregar para o lucro privado aquilo que deve estar sob gestão pública , que vem sendo bem feita há mais de 55 anos. Defenda a CORSAN!

(*) Advogado

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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