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24 de março de 2020
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18:42

O bode e as sete mil mortes

Por
Sul 21
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O bode e as sete mil mortes
O bode e as sete mil mortes
Junior Durski | Foto: Guilherme Pupo

Antonio Escosteguy Castro (*)

Circula pelas redes sociais vídeo de Júnior Durski, CEO do Grupo Madero, onde este se coloca contra a estratégia de confinamento (lockdown) que vem sendo utilizada para o combate do coronavírus no Brasil e em todo o mundo. Durski defende que poderíamos suportar umas 7 mil mortes no país como preço para não quebrar a economia, mantendo apenas os idosos e vulneráveis isolados, com o livre trânsito dos demais.

É um raciocínio duplamente condenável. Além de desumano, é falso. Desumano porque é inaceitável quantificar, precificar mortes em relação à manutenção da economia em curso. Simplesmente, como seres humanos, não podemos aceitar a lógica de que “ SE morrerem até tantos vale a pena”. E , ademais, quem estabelece o patamar aceitável ? 5 mil, 7 mil, 10 mil ?

E é um raciocínio falso , porque não existe na vida real a disjuntiva “ou lockdown, ou 7 mil mortes”. Esta estratégia de isolar apenas idosos, vulneráveis e contaminados foi inicialmente adotada pela Inglaterra e defendida por Boris Johnson. Mas estudos do Imperial College of London demonstraram que antes da imunização geral do país poderia haver até 250 mil mortes na Grã Bretanha. Com esta projeção, os ingleses passaram a adotar o lockdown e recentemente Boris Johnson determinou 3 semanas de confinamento no pais. Ainda assim, dito estudo estima em 20 mil mortes na Grã Bretanha. ( O leitor acha no portal da BBC News todo este debate).

A Grã Bretanha tem cerca de 67 milhões de habitantes. Grosso modo, um terço da população do Brasil. Se o modelo britânico for transposto para o Brasil, estamos falando da possibilidade de 750 mil mortos para obter a imunização defendida por Durski e alguns setores do bolsonarismo. Cinco ou sete mil mortes , como defende Durski, portanto, não será o resultado do levantamento do confinamento, mas de um lockdown bem sucedido… Sem lockdown, o risco é de centenas de milhares de mortes!

Falsificar os números dos estudos existentes é mais do que mera irresponsabilidade. Beira o ato criminoso, mormente em defesa de seu lucro. O ex-Presidente Lula já o disse muito bem: primeiro , cuidemos da vida das pessoas, depois cuidaremos da economia. Não existem soluções milagrosas , nem número de mortes aceitável. A sociedade deve tentar salvar todas as vidas que forem humanamente possíveis de serem salvas.

E enquanto Júnior Durski defendia o fim do lockdown, o Governo Bolsonaro editava a MP 927 , para regular as relações de trabalho no período de calamidade pública. A estrela desta MP era seu art. 18 , que permitia ao patrão suspender o contrato de trabalho de seu empregado por até 4 meses, sem um centavo de salário e sem qualquer benefício. A grita social foi tão grande , que o Governo teve de editar a MP 928 para revogar dito artigo 18.

Revogar o art. 18 , porém, é apenas tirar o bode da sala, como afirma o dito popular. O resto da MP 927 é igualmente inaceitável, porque está toda ela baseada na “negociação” individual entre patrão e empregado. Qual a possibilidade de , num ambiente de calamidade pública e pandemia, haver algum tipo de negociação real entre o patrão e seu empregado de forma individual? O resultado evidente destas “ negociações” será a perda de direitos e mais prejuízos para o trabalhador.

Num período de calamidade pública, especialmente, toda solução haverá de ser necessariamente coletiva. Negociada pelos sindicatos, abertamente , como , aliás, prevê a Constituição. Muito provavelmente será necessário abrir mão temporariamente de algumas parcelas de direitos, mas se feito de forma coletiva , haverá contrapartidas , onde se destaca, por exemplo, a garantia de emprego no período posterior ao levantamento das quarentenas.

O Poder Judiciário não pode reconhecer nenhum acordo feito individualmente neste período que acarrete perda de direitos para o trabalhador. Deve-se presumir que foram feitos sob enorme chantagem emocional e econômica.

A lógica de Júnior Durski e seus 7 mil mortos aceitáveis e da MP 927 é a mesma: a hora é de preservar o capital. O ser humano, o trabalhador , é um estorvo e sobre ele deve cair o preço da crise, seja pela morte de alguns de seus seres queridos , seja pela perda de seus direitos. Enquanto isto, dos bancos, que ano passado distribuíram mais de 50 bilhões de reais como lucro a seus acionistas sem pagar um só centavo de imposto, nada se cobra para enfrentar a crise. Que tempos…

(*) Antonio Escosteguy Castro é advogado.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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