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18 de outubro de 2017
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17:46

Atreveram-se a ensinar a missa ao vigário Leonel!

Por
Sul 21
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No desenho, o  presidente do PSD, Walter Perachi Barcelos, pega pela mão o correligionário do governador Ildo Meneghetti oriundo de Caxias do Sul mas pretendente à prefeitura da capital, para apresentar-lhe as ruas mais conhecidas do centro de Porto Alegre, evidenciando toda sua profunda ignorância em relação à cidade que queria governar. A chacota impressa foi decisiva para a vitória folgada de Brizola. (Imagem: Blog SamPaulo Cartunista)

André Pereira

Antes dos trêfegos marqueteiros e da vassalagem midiática, lá nos longínquos meados dos anos 1950, Leonel de Moura Brizola já tinha se dado conta do poder avassalador da comunicação comercial.

Não foi por acaso que uma década depois, em 1961, o então governador galvanizou o povo do Rio Grande e boa parte do Brasil com uma rede radiofônica que chamou de “Cadeia da Legalidade”, com transmissões a partir do porão do Palácio Piratini, exortando a gauchada a pegar em armas para defender a Constituição e a posse de Jango  Goulart na presidência do país.

Assim, através do PTB, comprou espaço de duas horas semanais na Rádio Farroupilha, a única que espraiava-se pelos mais longínquos rincões guascas, para destacar seus feitos de gestor na prefeitura da capital, descer o pau nas empresas estrangeiras exploradoras das riquezas nacionais e sentar a pau no governo estadual adversário, propagandeando o plano de escolarização que queria espalhar pelo Rio Grande afora, se um dia fosse governador.

Um grupo de intelectuais amigos, jornalistas sobretudo, escandalizou-se com aquele monólogo chato e repetitivo. A emissão ia ar na sexta tarde da noite e logo ganhou o apelido de “A fala do lobisomem”.

Além disso, as ondas do rádio hospedavam um Brizola falante pelos cotovelos, em uma monocórdia conversação de compadrio, sem os requintes retóricos do Paço Municipal.

Chocados, pediram uma audiência de emergência com o prefeito.

Brizola ouviu pacientemente arauto do grupo, o jornalista do Correio do Povo, Abdias da Silva, discorrer sobre os absurdos daquela estratégia intimista.

Então, Leonel retrucou ao afamado literato nascido no Piauí:

– Vocês não entendem nada de comunicação. Pois a sexta-feira à noite, depois da janta, é quando a gauchada se reúne em família ou com os amigos para tomar chimarrão e falar mal do patrão. É o fim de semana, de acúmulo de todo cansaço e exploração. E tudo isto está armazenado na alma, pronta a extravasar. Não tem melhor momento para conversar, mostrar solidariedade e lhe dar alguma esperança na vida. Vão ver os aumentos nas vendas de radinho de pilha por estes campos afora e vão se convencer que quem está errado não sou eu.

Os intelectuais da imprensa saíram com o rabinho no meio da pernas, como diz o vulgo chulo.

Por que haviam inventado de ensinar o padre a rezar missa?

Quem reconta essa história é um dos personagens participantes do episódio, o jornalista Lucídio Castelo Branco, o Castelinho, que completa, no dia 13 de novembro, 91 anos de idade esbanjando lucidez, em um encontro manhã de terça-feira (17/10) em sua residência em um edifício na encosta do caracol da Bela Vista, em Porto Alegre. A dorzinha no ombro que sobrou da batida do seu carro em uma árvore, no final de semana, é um incomodo que não atrapalha nossa conversa. “Foi culpa do celular”, confessa.

Fui procurá-lo motivado pela situação precária do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul, o SindJors, que Castelinho presidiu entre 1966 a 1968, data do registro, nas atas da entidade, da aquisição da sede no prédio de número 1270, da Rua da Praia, onde ergue-se o Edifício Carlos Torelly.

Rezava certa lenda que o imóvel (nunca averbado no registro imobiliário da 1ª Zona, como verifiquei lá na repartição da Travessa Leonardo Truda), tinha sido fortuita doação aos profissionais da imprensa de antanho.

Não, não foi doação nenhuma. Castelinho desmente, ao vivo e a cores de uma manhã nublada na sala do seu apartamento, oferecendo mais detalhes do que escreveu na página 86 do livro “Da memória de um repórter” (AGE Editora, 2002).

Piauiense, como o já citado Abdias da Silva, de estatura baixa como o irmão mais velho, o comentarista político Carlos Castelo Branco de afamada trajetória profissional no centro do país,  Castelo revela:

– Pedi 6 milhões de cruzeiros ao Guazelli para comprar a sede!

Explica que colegas da assessoria da Caixa Econômica Estadual, (como Joseph Zukauskas, que fez longa carreira na sucursal rio-grandense do Jornal do Brasil), intermediaram o encontro com o interventor Sinval Guazelli nomeado pelos generais que presidiam o país para governar o estado.

Assim, o tal dinheiro foi emprestado através da Caixa.

Castelinho cavoca o fundo da memória, agora:

– Acho que esta quantia inteirou o valor total pois tínhamos uma boa reserva no cofre.

Mas não lembra quanto custou exatamente o imóvel, entretanto o contrato de compra e venda número 99.946/ 1967 refere uma cessão no valor de 20 mil cruzeiros novos (NCr$ 20.000,00). A aquisição do imóvel no 13º andar do Edifício Carlos Torelly era natural já que o Sindicato funcionava no lado oposto do mesmo pavimento em um espaço acanhado cedido pela ACEG. Mais organizados, os profissionais da área do esporte produziram os dois candidatos ao pleito da época. Amaro Junior era mais velho que Antonio Carlos Porto mas ambos eram jornalistas esportivos. Amaro tinha sido, também, professor de Educação Física. A eleição de 1966 tinha carácter de marco histórico. Com o golpe de 64, comandava o sindicato uma junta governativa composta por Cicero Soares, Ênio Melo e Jair Cunha Filho.

O certo é que o Sindicato gozava de boa saúde financeira, então.

Deixara já de ser o clube de amigos que jactava-se de ter, entre os associados, o próprio cardeal arcebispo dom Vicente Scherer, além de duas manicures de deputados, que não se sabe bem se prestaram serviços também nas lides das letras.

É que a carteirinha de jornalista dava copa franca em muitos bares e restaurantes da moda; profissional com carteira não pagava ingresso em cinema, teatro e cabaré. E, também, recebia desconto de 50% em passagens aéreas. “Tudo era subsidiado na imprensa, do papel para impressão até os empregos”, rememora ele. ““Era comum jornalista ter mais de um emprego pois só com o ordenado de um jornal não dava para viver. Quando pedi aumento pela primeira vez me ofereceram um complemento em cargo público”.

Castelinho conta que a gestão administrativa e financeira ficou sob responsabilidade do funcionário “seu Maia” até sua morte, muitos anos depois.

Como ocorre até os dias de hoje, os jornalistas dedicavam-se à missão institucional de “de fazer política”. As finanças eram coisa para o gerente.

Se o interlocutor tiver tempo porque disposição não lhe falta, Castelinho fica contando acontecimentos múltiplos, desde seu nascimento em Teresina, o caçula entre nove irmãos (ainda vivem três irmãs centenárias), até os dias atuais, pais de três filhos, avô de seis netos, bisavô de uma menina e prestes a receber mais um bisneto, já nomeado Lucas. Resumidamente:  fez concurso público para auditor juramentado do Tribunal Militar na então capital federal, e do Rio de Janeiro, onde morou por dez anos (1939/1949), foi mandado para Porto Alegre.

No Rio começara a trabalhar como auxiliar de repórter policial no jornal A Vanguarda, por indicação do irmão que atuava na revista Cruzeiro. O teste foi feito pelo próprio irmão.

– Redige aí uma notícia sobre a morte por atropelamento da dona Gloria.

Lucidio caprichou no falecimento da vizinha que o irmão odiava. Mas o resultado foi desastroso, segundo avaliação de Carlos:

– Está horrível o teu texto, você não passa de um semi alfabetizado…

Apesar da lambada fraterna, Castelinho não desistiu.

Aqui trabalhou na Folha da Tarde, do mesma Companhia Jornalística Caldas Junior, dona do Correio do Povo, e no Jornal do Brasil, onde foi repórter, analista político e diretor para região sul.

Do livro de memórias do Castelinho, gosto especialmente de duas ocorrências políticas que ele compartilha.

A primeira, que chamo de “O poste de Gegê”, consubstancia Getúlio Vargas como notável antecessor de Lula a quem se credita todo o mérito pela eleição de Dilma Rousseff em 2010.

Pois na busca de um candidato para o PTB acabar com um impasse partidário nas eleições de 1950 ao governo estadual, Vargas resolveu apelar para um aparentado que era secretário da Segurança Pública do governo de Minas Gerais! A estratégia foi brutal: durante um mês Getúlio compareceu em dez comícios apresentando o pretendente ao Piratini que terminaria vitorioso: Ernesto Dorneles.

O segundo acontecimento está inserido na valorização da comunicação que notabilizou Brizola. No caso em tela, ele contou com a parceria decisiva do talento do desenhista Sampaulo que produziu originalmente para O Clarin, jornal do partido. uma charge de crítica contundente ao seu adversário nas eleições à prefeitura da capital em 1955. No desenho, o  presidente do PSD, Walter Perachi Barcelos, pega pela mão o correligionário do governador Ildo Meneghetti oriundo de Caxias do Sul mas pretendente à prefeitura da capital, para apresentar-lhe as ruas mais conhecidas do centro de Porto Alegre, evidenciando toda sua profunda ignorância em relação à cidade que queria governar. A chacota impressa foi decisiva para a vitória folgada de Brizola.

“Com  estes anos todos batendo máquina de escrever, veja como ficaram minhas mãos” diz, mostrando os dedos tortos nas duas mãos. (Foto: André Pereira)

Hoje, Castelinho lamenta que o jornalista não tenha mais o prestigio da sua época. Em uma reunião com ex-presidentes do Sindicato, na sede da ARI, há alguns dias, ele disse que o jornalista se encaminha rapidamente para ser um profissional em extinção, deixando seu posto para “comunicadores” de todos os matizes e as nuanças.

Castelinho conta que moralizou o sindicato, tratou de organizar a categoria e regulamentar a profissão.

No entanto, nem mais o diploma tem valor.

Convidou a primeira mulher, Yara Bendati, para integrar a diretoria do Sindjors em 1966. “Era preciso colocar uma comunista na chapa”, diz, entre risadas, lembrando das reivindicações de João Batista Aveline.

Ele, Aveline, mais Amaro Junior e Antonio Carlos Porto, candidatos à presidência do sindicato, encaminharam a composição da nominata depois de desistirem das candidaturas em favor de Castelinho.

Agora, no apartamento onde mora (“Comprado com dinheiro de servidor público concursado, e não de jornalista”, esclarece), Castelinho remói lembranças da carreira profissional iniciada em 1945 e só encerrada oficialmente em 1993, aos 80 anos.

“Com  estes anos todos batendo máquina de escrever, veja como ficaram minhas mãos” diz, mostrando os dedos tortos nas duas mãos.

Mas se gaba, faceiro:

“Nem o rápido Abdias, que foi o melhor texto jornalístico que o Correio do Povo já teve, era mais veloz que eu no ato de dedilhar o teclado.”

***

André Pereira é jornalista.


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