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19 de julho de 2017
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10:00

Os primeiros dias de vida de Anita e os derradeiros de Olga (E a velha mídia festejou a extradição rumo à morte)

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Sul 21
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Os primeiros dias de vida de Anita e os derradeiros de Olga (E a velha mídia festejou a extradição rumo à morte)
Os primeiros dias de vida de Anita e os derradeiros de Olga (E a velha mídia festejou a extradição rumo à morte)

André Pereira

– Ainda bem que fui privilegiada por não ser só um número!

Diante de uma plateia majoritariamente de jovens, lotando o auditório da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, em uma promoção do Grupo de Pesquisa em Cultura Política, Estado e Relações Internacionais (Cespri), coordenado pelos professores Sonia Ranincheski e Henrique Carlos de O. de Castro, dona Anita Leocádia Prestes diz isto como uma espécie de consolo existencial. Escapou de ser um número e jamais ser reconhecida pelos nomes que a identificam: Anita, tal qual Anita Garibaldi; Leocádia como a brava avó e Prestes, de seu pai, Luís Carlos.

Ela explica à gurizada o que narra no livro “Olga Benário Prestes –uma comunista nos arquivos da Gestapo”, editado pela Boitempo e lançado na noite do dia 11 em Porto Alegre : ao nascer no presídio alemão de Barnimstrasse, em Berlim, reservado às mulheres encarceradas pelos nazistas, os filhos das presas em regra geral eram levados a outro local de confinamento e identificados por um número correspondente à ordem de chegada.

Perdiam, assim, ali, para sempre, as referências familiares.

Mas a menina nascida em 27 de novembro de 1936, Anita Leocádia Prestes, filha de Olga Benário e de Luís Carlos Prestes foi acolhida por uma campanha internacional exigindo sua extradição bem como a da mãe, para o Brasil, o que só aconteceu quando ela tinha 14 meses de idade em 1938.

– Por isso, sempre respeitei a grande da importância da solidariedade humana, ainda mais quando é dimensionada em âmbito mundial – afirma para a assistência, de estudantes e professores, historiadores, jornalistas, curiosos.

Olga revoltou-se quando a filha lhe foi retirada, mas o destino ainda seria mais ingrato e cruel, sobretudo durante a estada nos campos de concentração de Lichtenburg e, sobretudo, de Ravensbrück, onde passou fome, foi forçada a trabalhos pesados e padeceu de maus tratos e torturas, até ser assassinada em uma câmara de gás no campo de Bernburg, em abril de 1942, muito jovem, silenciada aos 34 anos de vida.

– Ainda bem que ela morreu antes de começarem as terríveis experiências médicas, feitas especialmente com presas judias, como Olga, que sofreram tanto naquele campo de extermínio de Ravensbrück – e não de concentração.

Ao falar com seus ouvintes atentos, Anita ainda recorre, de novo, a mais este consolo existencial.

O seu livro, no entanto, é valioso do ponto de vista testemunhal graças à inédita documentação dos arquivos da Gestapo. Comunista perigosa e obstinada, e ainda judia, a alemã Olga foi a prisioneira do nazismo com maior volume de fichas: são mais de 2000 folhas reunidas em oito dossiês dos derradeiros dias de vida da militante revolucionária.

Olga e Prestes foram presos e separados em 1936 pela polícia do Brasil.

Como hoje, a mídia opinou favoravelmente à entrega ilegal de Olga, grávida de cinco meses de cidadão brasileiro, aos algozes do Terceiro Reich. Referindo-se à Olga, Elise Ewert e Carmen Ghioldi, o jornal O Globo mancheteou, na capa da edição de 26 de maio de 1936:

Evas indesejáveis… Serão mesmo expulsas do Brasil as extremistas estrangeiras.

Olga e Prestes jamais se viram novamente.

Tristemente, os últimos dias de Olga coincidem com o registro dos primeiros meses de existência de Anita.

Na correspondência reproduzida no livro, de um total de 55 cartas, Olga mostra esperanças de ser libertada e extraditada para o México, onde estavam, a filha, a sogra e a cunhada.

Em 1941, na última carta conhecida, conta ao marido a tristeza que sente ao ver que as companheiras de prisão recebem informações sobre os filhos. “O que ainda sei de minha filha? Mas, sabes, não deixaremos a coragem esmaecer”.

Entre as cartas trocadas por seus pais uma descoberta é particularmente afetiva para Anita: é a correspondência em que Olga informa a Prestes o nascimento da menina de “olhos não tão azuis como os teus, mais para o violeta”.

Por estar escrita em francês, segundo alegação dos alemães, ela foi interceptada e escondida até quando os arquivos de Gestapo, apreendidos pelos soviéticos após o fim da Segunda Guerra foram disponibilizados on-line (em abril de 2015).

Para se comunicarem, trocando mensagens por escrito, Prestes aprendeu o idioma alemão com a mesma determinação com que Olga buscava conhecer o português falado no Brasil ao longo do relacionamento do casal revolucionário.

A menina Anita não teve uma jornada tranquila; viveu com parentes asilados na França e no México, até 1945. Somente nesse ano, findada a segunda guerra mundial, Prestes e a família ficou sabendo que Olga tinha sido assassinada três anos antes.

Depois, em 1964, Anita foi novamente perseguida pela ditadura brasileira; exilou-se outra vez na União Soviética e só voltou ao país do seu pai graças à anistia, em 1979.

Aos 80 anos, forte e lúcida, Anita narra, neste mês de julho, na capital rio-grandense, a história da resistência da família Prestes para ouvintes gaúchos na esperança de “que todos os democratas se mexam para evitar a volta do fascismo que ronda o mundo e o próprio Brasil”.

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André Pereira é jornalista.


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