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3 de junho de 2017
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18:58

Senhoras da sociedade gaúcha na mira dos espiões do SNI

Por
Sul 21
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André Pereira

Às vésperas do Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado em 5 de junho, ocorre a apresentação, neste domingo (4), em São Paulo, na Competição Latino-Americana da 6ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental  do documentário “Substantivo Feminino”, que resgata a jornada das militantes gaúchas Giselda Castro (1923/2012) e Magda Renner (1926/2016), pioneiras no ativismo social que a luta ambientalista sintetizou durante a ditadura civil militar brasileira (1964/ 1985).

Magda Renner e Giselda Castro

Com narrativa através do fio condutor na voz da própria Giselda, lendo um relatório de atividades da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), o documentário dirigido pela gaúcha Daniela Sallet e pelo colombiano Juan Zapata trata das alegrias e dificuldades, dos reveses e das conquistas do percurso de três décadas de ativismo dessas ‘mulheres da sociedade’ então consideradas como “senhoras ricas e de meia idade” – com mais de 40 anos, mães, integrantes de famílias tradicionais, dotadas de um nível cultural elevado e porta voz da efetiva dimensão feminista, sem rótulos.

De quebra, de forma inédita, o filme revela que, como se fossem subversivas perigosas, elas foram expressamente monitoradas pelo regime totalitário e espionadas pelo Serviço Nacional de Inteligência (SNI).

Os olhares da película são mais amplos do que este recorte político, embora este seja obrigatório no contexto do país no período do início dos anos 1970 – quando José Lutzenberger e seus parceiros da Associação Gaúcha de Proteção Ambiental (Agapan) popularizaram a expressão ‘ecologia’.

São esses ecologistas, por exemplo, que pressionam a Assembleia Legislativa para criar um regramento legal de controle do uso de venenos agrícolas que resultou na lei número 7.477/1982, pioneira no RS e modelo para outros estados.  Incontáveis são as iniciativas da ADFG, desde a atuação nas comunidades vulneráveis, junto às mulheres das periferias, na oferta de bolsa de estudos a jovens carentes à frequente participação nas comissões temáticas permanentes do Parlamento rio-grandense e atos de protestos em Brasília, até a elaboração de capítulos específicos da Constituição de 1988.

Reunindo 45 depoimentos de variadas matizes, recolhidos no Brasil e no exterior, o filme destaca, no seu cerne, a própria mudança ideológica que acontece com duas senhoras, à medida em que os nefastos efeitos do sistema econômico em vigor se evidenciavam como graves injustiças sociais, elevação da desigualdade de classes e contundentes agressões ao meio ambiente.

Com importantes relações com organismos mundiais, domínio de diversos idiomas e presença constante em eventos fora do país –  propiciando o notável diferencial do acúmulo de informações de vanguarda – Giselda e Magda amplificam o tom das denúncias contra os danos do capitalismo e da excessiva dependência financeira, com reverberação internacional. E, claro, tem os passos acompanhados durante todo o tempo em que atuam à frente da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), entidade inicialmente de benemerência social nascida em 1964 e que se junta à Agapan na batalha pela melhor qualidade de vida, construindo “uma cultura voltada para a vida”.

São cerca de 60 documentos arquivados no SNI com menção às duas, e às entidades em que participam.

Ao próprio Estatuto da ADFG é reservada uma longa anotação no SNI sob o número 21 -4995/81. O informe, entretanto, resgata um documento original de 1975 quando a entidade passa atuar no setor ecológico.  A mudança de 1981, com a efetivação da parceria internacional com os Amigos da Terra, não está registrada neste documento.  Em compensação, com a numeração 2655/81, retroage-se ao episódio ocorrido em 1977, quando o universitário Carlos Alberto Dayrell recusou-se a descer de uma árvore da avenida João Pessoa, no centro de Porto Alegre, para impedir seu corte por funcionários da prefeitura da capital preparando o erguimento de um viaduto no lugar.  Classifica-se, no SNI, a atitude do jovem mineiro que estudava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul como de “inquietação social”.

Um manifesto anterior, de dezembro de 1976, de autoria da ADFG e de outras 20 entidades contra a criminalidade crescente de Porto Alegre, é resgatado no documento 9136/84.  Neste ano, a agência porto-alegrense do SNI preocupa-se também em acompanhar a eleição para a mesa diretora da Assembleia Legislativa gaúcha, de acordo com a ficha 8700/84.

Pouco adiante no calendário, na ficha de numeração 10425/84, destaca, na ADFG Amigos da Terra, a inclusão do nome de Eloar Guazelli Filho.

O serviço de espreita acompanhou atentamente a II Semana Ecológica Alternativa, como flagra o documento 2569/85.

No mesmo ano de 1985, comunica-se que ‘realizou-se no dia 4 de setembro, na “Esquina Democrática“  (Andradas com Borges de Medeiros) em Porto Alegre/RS, um ato público pela Constituinte, promovido pelo Movimento Gaúcho da Constituinte’.  Detalha que no evento  houve show musical e participação de cerca de 180 pessoas. E que Giselda Castro manifestou-se assinalando que o povo brasileiro constituíra uma força política “a qual não pode ser ignorada, conquistando o direito à Constituinte livre e soberana; que o povo não pode mais aceitar decisões políticas vindas de cima; que é necessário que se defenda o meio ambiente e que a ecologia é uma luta política de sobrevivência”.

Em duas longas fichas, mas com o mesmo identificador número 59 708/86, que remete também ao dia 9 de junho de 1983, os agentes discorrem sobre o Movimento Feminista. Para eles, é considerado um dos “movimentos de massas”, manipulador como as manifestações de negros e homossexuais. São alinhadas, por ordem alfabética, entidades e lideranças investigadas.

O olhar penetrante do funcionário da repressão viu, possivelmente com algum espanto, o próprio Prêmio Nobel de Paz 1980, o argentino Adolfo Perez Esquivel, palestrando no I Seminário Internacional Ecologia e Paz realizado em 30 de agosto de 1988, nas dependências do Hotel São Rafael, em Porto Alegre. E mais perplexo seguramente ficou quando percebeu a constelação de astros estrangeiros que desfilou no encontro. Teve que identificar também o presidente do Conselho Mundial da Paz, o indiano Romesh Chandra; o vice primeiro- ministro do Yemen Hassan Makki; o espanhol Carlos Carreras; a inglesa Tricia Lewis; o sueco Lars Carlzon; o norueguês Tergen Larcen; o tcheco Kvestolav Odracek; o cubano Lino Fernandez; o panamenho Nataniel Arboleda; o argentino George Alberto Krebs; o boliviano Rodolfo Ediad Araus; o uruguaio Francisco Corbet; os russos Nikolai Fedorovitch Reimers e Alexandre Arturovitch Snian; o congolês Vital Balla; o português José Farias; o físico inglês G Hutchinson; e os angolanos Vicente Gomes, Manoel da Costa Neto e Domingos Coelho Cruz.

O servidor acrescentou que, no dia 1º de setembro, após o encerramento do seminário,  Romesh Chandra, Vital Balla, Lino Fernandez e Antônio Pinheiro Machado Neto visitaram as ilhas do Delta do Jacuí.

Em 29 de janeiro de 1986, de acordo com a transmissão feita no horário das 16:51, no W/TG3/00054/140/B3A/300186, a ADFG enviou telex ao presidente brasileiro José Sarney, chamando sua atenção, abre aspas, “para as consequências desastrosas dos chamados projetos de desenvolvimento e assentamento na Amazônia”, fecha aspas, alertando-o de que este fato poderá levar a catástrofes ecológicas irreversíveis e ao caos econômico e social, abre novas aspas, “servindo apenas aos interesses de uma privilegiada minoria nacional e internacional”.

Segue a narração no fichário sustentando que a vice presidente da Ação Democrática Feminina Gaúcha, Giselda Castro, salientou que a ADFG se integrou ao lançamento de uma campanha mundial pela preservação das florestas tropicais também em 29 de janeiro de 1986, pelo “Instituto Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED) e pela organização “Amigos da Terra”.

E, ainda no mesmo comunicado, revela que no futuro dia 5 de fevereiro as entidades ambientalistas se reunirão em Paris.

A Mensagem Expedida W/TG3/00188/140/B3A/200386 denuncia que Magda e Giselda enviaram oficio ao ministro da Saúde, Roberto Santos, “pedindo explicações sobre o anúncio da campanha de erradicação da malária no Brasil com a utilização de DDT quando já ficou provado que esse pesticida não combate o mosquito transmissor, mas somente faz com que ele se torne ainda mais resistente”. As duas estranham a coincidência do comunicado oficial com uma extensa reportagem do jornal alemão ‘Die Badische Zeitung’ recomendando o emprego do veneno agrícola para atacar a doença no Terceiro Mundo, afirmando ser a única solução viável nos países menos desenvolvidos. Ao mesmo tempo, o jornal informava que o DDT não é mais utilizado no Primeiro Mundo pois já foram encontrados substitutos para o combate à malária.  “A campanha lançada no Brasil é incompreensível para a ADFG porque em maio de 1983 o ministro da Saúde em seu boletim mensal do Centro de Documentação condenava o uso do pesticida contra a malária”, dizia o redator militar, acentuando que “para as ecologistas todos os detalhes envolvidos tornam evidente que há interesses políticos e econômicos escondidos sob a utilização do DDT no Brasil e nos demais países do Terceiro Mundo”.

Algum agente infiltrou-se no evento de 5 de junho de 1989, Dia Mundial do Meio Ambiente já que, como aponta o registro 17400/89, houve ato político na Esquina Democrática e passeata com rumorosa caminhada pela Rua da Praia, no movimentado centro da capital rio-grandense.

Ainda em 1990, o SNI segue interessado em desvendar de onde vêm os “recursos financeiros e apoio recebido pelas entidades dos movimentos populares”.

O documento 73733/90 cita pessoas físicas e jurídicas, prefeituras e secretarias de governo com valores determinados pelas siglas NCZ$ de cruzado novo e US$ de dólares.

No anexo 1 do prontuário revela-se que a Federação das Mulheres Gaúchas (FMG/RS) controlada pelo MR-8 enviou NCZ$ 690.000,00 à Federação das Mulheres do Brasil obtido com a propaganda e a venda da revista Brasil Mulher, conveniada com o Ministério da Saúde.

Como se verifica apenas pelo tracejado fixado no Acervo do Regime Militar, se poderia montar o mapa da militância social pacífica de Giselda e Magda, no recorte temporal especifico de 1976 a 1990, da ditadura à redemocratização, que parecia tão perigosa para o autoritarismo.

Também autora do roteiro do filme, Daniela aposta que se fossem vivas e a saúde permitisse, certamente Giselda e Magda estariam participando das manifestações que se multiplicam no Brasil questionando a legitimidade institucional e a situação cada vez mais conturbada do cenário político atual.

De fato, defensoras da necessidade intransferível de fiscalização da sociedade civil sobre os rumos do país e destinos dos brasileiros, ela fazem muita falta neste momento nebuloso do Brasil.

Mas, como diz a cineasta, em sua carinhosa homenagem à memória das duas, Giselda e Magda deixaram, sobretudo, um “grande legado de amor à humanidade”.

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André Pereira é jornalista.


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