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22 de junho de 2017
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10:00

Dona meritíssima, se cuide com seu Deus

Por
Sul 21
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*André Pereira

Passada a imensa raiva com a senhora, por toda a tragédia com mulheres e crianças que a meritíssima autorizou, tenho até uma certa pena do que seu Deus pode fazer com a doutora.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

O homem lá de cima, o rei dos cristãos, é  mau e  muito vingativo.  Pode mandar a doutora para aquele inferno que ele criou para assustar a gente.

Sabe, aquele fogaréu todos nos consumindo, nos fazendo urrar de dor? E o coisa ruim, o satanás, o demônio, gargalhando da senhora?

Esse homem de barba branca e olhar bondoso dos retratos de igreja impingiu ódio mortal aos próprios filhos, depois do incesto e da maçã, expulsando os moleques do paraíso.

E o que foi sua maldade fomentando um irmão matando o ombro, a pauladas?

E os tantos pecados que Deus listou? Em algum deles, certamente, a meritíssima está incursa.

Então se prepare, doutora, que algo vai lhe acontecer, na sentença da justiça de Deus.

Que a justiça dos homens, a senhora bem sabe, não vai dar em nada, se for a favor dos pobres.

Então, é o juízo divino que a senhora deve temer.

Sabe-se lá, uma doença incurável, a perda do filho querido, um ataque tipo AVC, a vida futura de fralda, na cadeira de rodas…

Nem gosto de pensar na intolerância Dele.

Não vou lhe agourar, dona doutora.

Sou batuqueira temente às entidades, mas meu nome, Maria José, é homenagem aos pais terrestres do Cristo.

Claro que a senhora não é macumbeira. Teve infância feliz, vestido de fita cor de rosa; adolescência com baile de debutante, colégio caro, aula de língua estrangeira, faculdade de direito afamada.

Por certo, jovem idealista, a mocinha universitária teve sonhos e sonhou até mesmo em fazer justiça para os menos favorecidos, não?

Acho que todo advogado novo, antes de entrar no mercado, imagina que ganhar dinheiro é o que menos importa.

O que vale mesmo é contribuir para diminuir as injustiças, fazer prevalecer a verdade, a igualdade, a liberdade, estes valores humanistas, é isto que importa ?

Aí é que não lhe entendo mesmo, doutora.

Permitir aqueles brutamontes, de olhos vertendo ódio e força física desmedida, brutalizar tanto a gente abandonada, despossuída, excluída, que passa frio, chora de fome, e não tem nada na vida.

Jogar gás nos rostos de mulheres e crianças, velhos e gestantes.

Atirar bala de borracha até em deputado. Arrastar as pessoas desarmadas pelo asfalto.

Ignorar o gritos de socorro, os gemidos de dor…

O que nos difere afinal, como ser humano, uma mulher da outra?

A falta de dinheiro, apenas?

Ou é a sua imensa sorte de nascer no seu lar?

Ou é a minha extrema infelicidade de ser parida no meu casebre?

É uma questão de sorte sua e dos seus? E de puro azar da minha gente?

Bom, não tive infância; depois de abusada por um padrasto tarado, minha mãe sem mais marido olhou para o outro lado.

Engravidei menina ainda e não perdi só a honra e a ingenuidade.

Perdi também a esperança no mundo dos adultos. Pirralha com filho, também nem fui mãe; deseduquei mais um infeliz.

Tive outros rebentos remelentos, de fornicadas com homens que se regalaram debaixo da minha saia e sumiram no mundo.

Me deixaram barracos com ratos e crianças famintas.

Só não virei puta, doutora juíza, porque não está na minha pessoa se vender por dinheiro algum, entende?

A senhora nunca me pagou uma faxina (que é lida de profissão que me sobrou).

Mas sou eu que pago parte do seu salário, nos impostos que me cobram.

É o mesmo tributo que a senhora e os seus iguais pagam em cada Coca- cola que tomamos

No entanto, por faxineira curiosa, sei de suas vidas boas, tão diferentes da minha: suas residências com piscina, camas aquecidas, ar condicionado, lareira, churrasqueira, férias no estrangeiro, bebida do bem bom, comida de caviar.

Sim, ambas andamos de Mercedes Benz, o seu importado; o meu, coletivo da Carris.

Na cama, boto para quebrá, me mergulho toda no gozo; e a senhora pega no ganzá, afoga o bozo?

Na mata ciliar prefiro a cobra; a senhora gosta de outra aranha?

Bom, respeito, mas não faço campanha.

Não quero lhe desrespeitar, dona juíza, porque as nossas diferenças não vão se alterar.

Nunca fui em academia, nem sei o que é ioga, muito menos o tal pilates.

Jamais entrei em um cinema. Filmes, só vejo na TV.

Não li um livro inteiro na vida. Não tive ensino, e nem educação que lar desfeito não produz.

Sou ignorante, mas não sou burra.

Por isso, doutora meritíssima, me inquieta a razão, me entristece o espírito, me esmaga o coração, comprovar, com a dor do meu corpo e a humilhação da minha alma que gente como a senhora, que tanto estudou, pelo mundo todo viajou, muito se preparou, nos trata como lixo, escória, menos até que seres humanos, pouco mais que animais, talvez.

Assim é por causa de gente como a senhora, meritíssima, com suas excelências, omissões, descasos e ambivalências — e não por culpa da minhas insuficiências — que o mundo é tão triste e cada vez mais infeliz, dona doutora.

Que o seu Deus seja misericordioso no seu julgamento e piedoso na sua sentença.

(Assina Maria José da Silva, sem teto, alojada em algum lugar momentâneo, com seus filhos e seus trapos, que logo vai ser, de novo, despejada).

.oOo.

André Pereira é jornalista.


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