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6 de maio de 2017
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10:00

Não podemos perder o futuro também

Por
Sul 21
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Não podemos perder o futuro também
Não podemos perder o futuro também

André Pereira

Foto: Guilherme Santos / Sul21

Jovens de corações retumbantes, mentes livres e futuro ameaçado por governantes ilegítimos proliferam juras de amor:

– Dilma, eu te amo!

Apaixonada juventude viceja proclamas intensas:

– Linda! Volta, querida!

Assim, com cânticos, aplausos e sorrisos, o auditório lota por completo com pessoas ocupando até os degraus do espaço nobre do Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), na aula inaugural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, na tarde de terça-feira, 2.

Dilma Rousseff retribui tanta emoção com uma aula inaugural notável, com tons de lição de vida.

Movida pela interação instantânea celebrada com a plateia efervescente, a última e única presidenta eleita do país fala, de pé, durante quase duas horas, sem beber um pingo sequer de água.

O afeto sacia a sede de Dilma.

Ela conta para os estudantes gaúchos toda a saga do impeachment, cujo cerne de comando era do detento que presidia a Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, autor da chantagem dos três votos do PT que queria que ela autorizasse a seu favor para evitar a condenação na Comissão de Ética do Legislativo Federal.

Apenas três votinhos, que decretariam as mazelas do seu destino institucional.

Sob uma cascata de ovações das mulheres, Dilma alude à gramatica misógina da sintaxe golpista que intercalou ofensas, palavrões, ódio e intolerância com a disseminação do uso de dualidades de gênero, nas quais a mulher que governa é dura, instável e obsessiva compulsiva. O homem, ao contrário, é forte, empreendedor, ponderado.

A assistência se diverte quando Dilma define com o termo “sincericídio” a confissão do ilegítimo Temer, em um canal de TV, de que o impeachment, de fato, não aconteceria se ela tivesse simplesmente aceito a proposta do impostor.

Ou seja, sem que lhe perguntassem, imerso na própria tolice, o próprio interino que usurpa a presidência, confirmou, em transmissão em rede nacional, que não houve crime de responsabilidade algum que justificasse o impedimento previsto na Constituição para casos graves de prevaricação, malversação, suborno, traição, roubo ou improbidade governamental.

Dilma, depois, ainda lerá uma nota de autoria do Ministério da Fazenda desse mesmo personagem que a atraiçoou, assinada um mês e pouco depois de ocupar o cargo, declarando publicamente, em junho de 2016, que a situação do Brasil era “de solidez e segurança porque os fundamentos são robustos”.

“O país tem expressivo volume de reservas internacionais e o ingresso de investimento direto estrangeiro tem sido suficiente para financiar as transações correntes. As condições de financiamento da dívida pública brasileira permanecem sólidas neste momento de volatilidade nos mercados financeiros em função de eventos externos. O Tesouro Nacional conta com amplo colchão de liquidez. A dívida pública federal é composta majoritariamente de títulos denominados em reais Além disso, o governo anunciou medidas fiscais estruturantes de longo prazo. A recente melhora nos indicadores de confiança e na percepção de risco do país reflete essas ações. Nesse contexto, o Brasil está preparado para atravessar com segurança períodos de instabilidade externa.”

– Onde está, então, o país em crise que me acusam de ter promovido no meu governo?

O golpe, repete ela, foi engendrado, essencialmente, para enquadrar o Brasil no neoliberalismo interrompido pelos governos do PT.

Depois de quatro derrotas eleitorais consecutivas, sem perspectivas de se legitimarem, pelas urnas, só restava aos neoliberais golpear a democracia, o estado de direito, a constituição, toda e qualquer regramento.

Por isso, o golpe entrega as riquezas do Brasil (a camada do pré-sal, acima de todos os tesouros) e ataca os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, que se opõem aos privilégios dos poderosos, às imposições do mercado e aos interesses estrangeiros.

Dilma observa que cortar os investimentos constitucionais em educação e saúde limitando-os por 20 anos, prejudicando os mais pobres, não incide só na simples diminuição de recursos para estas áreas. Reflete, fundamentalmente, no futuro da educação dos mais necessitados e, mesmo, nas suas condições de saúde para ascender no mercado de trabalho. Isto é, a casa grande segue decidida a preservar os mesmos limites eternos da senzala. “A educação é como um passaporte para o futuro”, compara.

A presidenta também defenderá, enfaticamente, a necessidade de reformas tributária e política – e não estas antirreformas destrutivas trabalhista e previdenciária, que isentam sempre os mais ricos, os poderosos.

Para ela, sem um urgente reordenamento tributário, com taxação de grandes fortunas, heranças e operações financeiras, não haverá justiça fiscal no nosso país. “Em todo o mundo, só o Brasil e a Estônia não tributam ganhos de capital.

“Quem paga imposto aqui é o trabalhador e a classe média”, sustenta.

Com seu sólido conhecimento prático, ela afirma que o país também seguirá ingovernável, caso ignore a urgência de uma profunda reformulação política, efetuada através de uma Constituinte realmente exclusiva com legisladores escolhidos somente para esta tarefa.

Dilma não tem dúvidas que só se terá democracia plena com a democratização da mídia. “Com o oligopólio atual não há contraponto, não espaço para opiniões divergentes, há apenas uma única voz. Por isso, a mídia assume o papel estratégico na ponta de lança do processo que une parlamento, judiciário, empresários, financistas.

E até mesmo de produzir julgamentos e formular suas próprias sentenças.

Sobre as suspeições que a imprensa comercial lança sobre ela, Dilma até acha graça pois, ao invés de acusá-la de receber alguma propina, a perseguição midiática constrói uma recorrente manchete pueril:

– “Dilma sabia!”

Ora! Aqui, triunfam rasgos de infantilismo jornalístico, assentado em um subjetivismo de impossível comprovação.

O Sul21 reproduz a palavra dela: “Sempre que tivemos mais democracia nós ganhamos. Quando não temos democracia, nós perdemos. Por isso, precisamos ampliar os espaços de participação. Na passagem da ditadura para a democracia, nós tivemos uma transição por cima, que não julgou os torturadores e ocasionou graves danos com repercussões no presente. Quando o deputado Bolsonaro votou a favor do meu impeachment, ele votou também a favor da tortura e do torturador que me aterrorizou. Em um pais democrático, isso não aconteceria. Nós precisamos de um acordo por baixo no Brasil e só tem um jeito disso acontecer: eleições diretas para presidente da República”.

Naturalmente, a democracia somente se consolida com eleições diretas à presidência.

Mas os golpistas estão em um impasse cruel já que carecem de projetos para a maioria da população e não têm candidatos capazes de ameaçar a liderança de Lula comprovada nas pesquisas de opinião.

Ao que percebe, candidatos de direita e extrema direita digladiarão pela preferência da aliança direitista.

Por isso, é tão importante inviabilizar a candidatura de ex-presidente – mesmo que isto possa ser prova cabal da vigência de um inacreditável estado de exceção no Brasil, com a característica inusitada de juízes falarem pelos cotovelos usufruindo da espetacularização midiática. 

 “Mas juiz não deve se manifestar fora dos autos”.

Exorta ela, ao finalizar, que todos se empenhem na tarefa crucial de salvar o futuro do Brasil e dos brasileiros. 
“O presente, este nós já perdemos!”

Animada, Dilma até brinca, no instantes derradeiros da palestra: “me permitam sair à esquerda”, diz apontando para a porta oposta ao lado destro.

Deixa o púlpito mas refreia seus passos para receber flores e homenagens de professores e alunos que sobem no palco.

Na plateia reclamam, mais uma vez, do prematuro encerramento da primeira aula do ano.

Sem arredar pé, transbordantes de ensinamentos novos, os jovens trocam olhares recém amadurecidos.

.oOo.

André Pereira foi o jornalista presenteado com a coleção pela família da JK.


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