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18 de maio de 2017
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10:00

A Matilde de Neruda. Ou o Pablo de la Chascona

Por
Sul 21
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Matilde no velório de Neruda

André Pereira

Diante do corpo sem vida do marido de Matilde, os amigos preocupados com a ira da ditadura militar chilena tentaram convencê-la a transferir o velório para um local longe da residência, que ele erguera clandestinamente e os dois construíram em Santiago no cotidiano da vida da pareja apaixonada.

– Não e não!, retrucou a mulher. ¡No, por supuesto que no! ¡Acá vivimos; acá vamos a morrir!

Na sala inundada pela água liberada pelo vandalismo dos golpistas de poucos dias atrás, estavam todos acabrunhados com a companhia brutal da morte, não só neste dia 23 de setembro, mas desde o dia 11 de setembro de 1973, quando Allende pereceu, resistindo, de arma em punho, dentro do La Moneda, ao bombardeio que devastou o Palácio, derrubou-o da presidência e tirou-lhe a vida.

Mas Matilde seguiu com a alma ainda mais determinada naquela noite de dor e lágrimas retidas sem permitir que se apiedassem da sua perda.

Dali só sairia na manhã do outro dia, depois da despedida honrosa na casa que Pablo chamava de La Chascona, justo em homenagem aos cabelos arruivados, fartos e despenteados da mulher que tanto amava.

E assim, sem pregar os olhos durante a madrugada fria, como são as noites ali ao pé da cordilheira dos Andes, Matilde comandou a lenta saída do féretro, sobre tábuas improvisadas para vencer a inundação no trajeto insinuante de planos e escadarias da edificação pendurada nas vizinhanças do cerro de San Cristóbal.

Na rua, aglomerava-se uma pequena multidão, pronta para seguir o caixão, acariciando o corpo inerte do poeta e protegendo a viúva ferida.

A multidão foi sendo engrossada ao longo de todo o caminho até o cemitério de onde Neruda foi enterrado naquele dia em Santiago do Chile.

(Anos depois seus restos mortais, bem como os de Matilde, foram transferidos para a Isla Negra, em lugar voltado para o Pacífico).

Cada vez mais gente de todas as idades incorporava-se ao grupo de amigos, companheiros de militância e admiradores do poeta que ganhara o Nobel de Literatura em 1971, repetindo conquista chilena da poetisa Gabriela Mistral em 1945.

Mas o que um poeta representava para seu povo indígena descendente da orgulhosa tribo mapuche a ponto de despertar tamanha adesão a um funeral que se agigantava ?

Amigo e companheiro de militância comunista de Salvador Allende, Neruda sentira muita dor e pesar com a morte brusca e violenta do presidente socialista.

Dizem, hoje, no Chile que tão imensa tristeza apressou-lhe a doença fatal, assassinando-o de vez.

Dizem outros que teria sido envenenado para calarem a voz e silenciarem os versos que se espalhariam no mundo inteiro denunciando as atrocidades dos militares e da elite que tomaram conta do país.

O certo é que a população golpeada subitamente no seu estado democrático do direito solidarizou-se com a lancinante perda, que era de Neruda, de todos os chilenos, e que era também a perda de Allende, do sonho socialista da igualdade e justiça no país.

E a caminhada rumo à última morada de Neruda transformou-se em um grande protesto àquela ditadura que se comprovaria intolerante e bárbara nos anos seguintes até 1990.

Matilde Irrutia permaneceu fiel à casa até 1985, quando morreu, e a ditadura ainda vigorava em seu país.

Diferentemente das casas de Neruda que também abrigam museus, na Isla Negra e em La Sebastiana, localizada em Valparaiso, a construção da capital tem o espírito inquieto de Matilde, por quem Pablo se apaixonou em 1953 quando ainda era casado com Delia del Carril , de quem se separou em 1955.  Matilde era um cantora sem reconhecimento amplo e ao conhecer Pablo, adoentado em uma viagem ao México, serviu-lhe de enfermeira.

Sobre ela, Neruda escreveu em “Cem Poemas de Amor”:

Matilde canta com voz poderosa as minhas canções.

Eu dedico-lhe quanto escrevo e quanto tenho. Não é muito, mas ela está contente.

Vejo-a agora a enterrar os sapatos minúsculos na lama do jardim e, em seguida, a enterrar também as suas minúsculas mãos na profundidade da planta.

Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as flores, todos os frutos fragantes da felicidade.

La Chascona tem sua própria identidade que legitima o museu em que foi transformada.

Hoje, a residência dos amantes gerada da maneira camuflada incorporada à rotina daquela paixão adúltera, está aberta à visitação paga, guiada por narrativas em áudio fones em vários idiomas que termina na venda de souvenirs. Não se permite fazer fotografias internas. Mas cada detalhe da residência pode ser adquirida nas fotos (comercializadas na lojinha) que preservam para sempre a memória do casal, lembranças de Allende e da notável primeira manifestação pública contra o golpe da ditadura, motivada pela coragem e pela devoção de Matilde ao homem que amava.

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André Pereira é jornalista.


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