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3 de maio de 2017
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10:00

A coleção de revistas do JK, enfim no lugar certo

Por
Sul 21
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Jayme Keunecke | Foto: USCS

André Pereira

Antes do amanhecer em um dia da semana passada, ouvi o nítido burburinho aumentando na sala ao lado do meu quarto. Ainda na penumbra da sonolência, pensei escutar um coro semelhante àquele zunido dos jograis homofóbicos dos torcedores catarinenses quando o time de Renato Carioca joga em solo barriga verde. Assustado, abri a porta da sala contígua e me deparei com aqueles lindos volumes, caprichosamente encadernados, fora de seus lugares na estante principal,  onde, na noite mais recente, eu tinha enfileirado todos os oito, um a um, com perícia de decorador de interiores. Confesso que após aquela penosa operação manual, fiquei, por bons momentos, embevecido e orgulhoso a contemplar os livros de capa dura, em cor vermelha com lombadas em letras douradas. Fixados no centro da biblioteca caseira, emprestavam ao ambiente um refinamento literário de orgulhar livreiro apaixonado.

Mas e agora, o que justificava aquele ruidoso desabafo em tom de motim emocional que saudava, com ira e estridência, o novo dia ?

Juro que ouvi a voz empostada de indignação do primeiro dos 69 exemplares da revista Parlamento, datado de agosto de 1970, reclamando do desprezo com a memória, a cultura e a história que este escriba alimentava, reduzindo os impressos jornalísticos a bibelôs de prateleiras!

– É esta, afinal, a derradeira desimportância que nos legastes, em que só servimos para meros enfeites de parede?

Foi a senha para todos os outros 68 protestarem, em fervorosa ladainha, denunciando o meu “egoísmo dilacerante” (heim?), a apropriação cultural indébita (opa!) e o crime de irresponsabilidade intelectual ( como?).

Então, sensibilizado, me pus a matutar sobre a dimensão daquela obra que o jornalista Jayme Keunecke preservara, com carinho, como testemunho de sua trajetória vinculada ao Parlamento gaúcho, que cobriu até os últimos dias de vida jornalística antes de morrer, aos 78 anos, em 2014.

As revistas Parlamento, da coleção reunida de 1970 até 1983 por Jayme Keunecke  (cujos expedientes registram seu nome no pioneiro e no último exemplar) se prestam para muitas pesquisas, fundamentalmente sobre os acontecimentos vividos nestes 13  dos 21 anos de vigência oficial da ditadura civil militar no Brasil, com censura à imprensa e cerceamento aos partidos políticos e proibição às eleições.  As fotografias, naturalmente, são valiosos registros também.

Essa coleção testemunha um período de fato crucial das trajetórias política, social  e econômica brasileira que começa em plena ditadura em agosto de 1970, com a cultura e as artes em geral e o jornalismo em particular sofrendo pesadas restrições.

O repórter JK integrou a primeira equipe da redação dirigida por Salomão Kirjner, José Luiz Pereira da Costa e Orlando Loureiro, ao lado dos colegas Cecílio Pereira, João Carlos Terlera, Éldio Macedo, Odilon Rodrigues, Paulo Sérgio Correa e Martim Souza. (JK também está no expediente da edição 69, a derradeira desta coleção). A publicidade era de responsabilidade do fotógrafo Carlos Contursi que respondia como ‘relações públicas’ da revista. O projeto gráfico é do argentino Anibal Bendati (que já tinha inovado a diagramação da Última Hora) que dividiu o planejamento com Antônio Machado.

O endereço para correspondência era o Gabinete de Imprensa da Assembleia Legislativa do RS. Explicava o editorial inaugural, nomeando os fundadores como o “grupo de cronistas parlamentares vinculados à Assembleia, mas independentes”. Apresentam o projeto editorial como imbuído da missão de prestigiar o Parlamento rio-grandense, definido com centro principal das suas atenções.

A capa estampa uma fotografia do prédio do Palácio Farroupilha, sede do Parlamento gaúcho a partir de 1967. Inicialmente projetada para ter circulação mensal, “Parlamento” foi publicada, por vezes, com data de dois meses consecutivos.

Em 1974, por exemplo, a revista acompanha a lenta e gradual abertura política que ocorre com eleições de novembro para o Senado, para a Câmara e as Assembleias Legislativas, registrando a derrota constrangedora nas urnas da Arena, extensão partidária do regime totalitário. Especialmente no Senado o governo sofreu uma derrota marcante: dos 22 estados que na época elegiam senadores, o MDB triunfou em 16, marcando a ascensão definitiva do Movimento Democrático Brasileiro como partido viável de oposição. Desse partido oposicionista, o jurista gaúcho Paulo Brossard foi escolhido como senador em uma vitória eleitoral estrondosa.

A eleição de 74 envolvia apenas um terço dos senadores. Por isso, a Aliança Renovadora Nacional pôde manter a maioria no Plenário. No entanto para evitar um desastre na eleição seguinte, o governo tratou de mudar a regra do jogo.

Um ano e meio antes da eleição de 1978, o general Ernesto Geisel — quarto dos cinco presidentes militares da ditadura — fechou o Congresso e, durante o recesso, impôs uma reforma política que impedia o MDB de assumir o controle das duas Casas. O retrocesso representado pelo Pacote de Abril de 1977 mostrou que o caminho até a volta da democracia ainda seria tortuoso. No entanto, a vitória da oposição em 1974 representou uma mudança irreversível no panorama político brasileiro: a partir dali, o fim da ditadura pela via legal deixava de ser uma utopia.

No RS, o MDB também elegeu Pedro Simon como o deputado estadual mais votado na AL.

Mesmo assim não parecia surrealista o título “Governador escolhe prefeito de Porto Alegre” de uma matéria da revista, em seu número 36, datada de julho de 1975. Ainda era o fiel retrato da ditadura brasileira, de uma época sem eleições diretas gerais e nula participação popular nos destinos do país que mal começara a mudar no ano anterior com pleito parcial. No caso citado, o arenista Sinval Guazelli, também selecionado pela vontade exclusiva dos militares ao lado do vice-governador Amaral de Souza, ungiu Guilherme Sociais Villela (Arena) para ocupar o Paço Municipal da capital gaúcha.

No número 38, de janeiro de 1976, a revista muda a abordagem editorial e a apresentação visual, além da própria diretoria.

Os novos diretores são Itacir Rossi e Clovis Mezzomo, mais conhecidos por suas ligações com produções cinematográficas (dirigindo filmes do cantor regionalista Teixeirinha, por exemplo). Não por acaso, a ilustração de capa que substitui os habituais retratos de políticos, é a imagem do Troféu Kikito, concedido aos premiados no festival cinematográfico de Gramado.

Com repaginação gráfica feita por Manuel Mendes, a revista também passa a se anunciar como Edição Nacional. E o valor da assinatura anual, conforme cupom incluído no corpo do exemplar, era de Cr$ 200,00 (cruzeiros).

Antes dedicada a um tema principal que servia de manchete, a capa da revista, a partir de então, exibe vários assuntos políticos mas também de cunho geral. Entre estes, a temática nova da ecologia, refletindo a ânsia crescente da sociedade contra a política econômica e ambiental do governo.

Na edição 60, de 1979, quando o redator-chefe era o jornalista Darci Demétrio, a capa sequer tem manchete, chamada ou título: exibe apenas uma fotografia do ex-governador Leonel Brizola, só com o enunciado do sobrenome. Ainda no exterior, à época, exilado pela ditadura, Brizola pronuncia-se para “Parlamento” com desenvoltura e conhecimento sobre a realidade brasileira, enquanto aguarda a oficialização da anistia, em setembro próximo, para poder voltar ao Brasil.

Com suas singulares características, editoriais principalmente no período excepcional da repressão,  a documentação é valiosa, também, para estudo da própria mídia e sua relação com as instituições e os governantes.  Por exemplo, o exemplar número 9, de abril de 1971, publica uma matéria em que os jornalistas vinculados à Assembleia reúnem-se com os deputados para estreitar relações e apoiar a criação de cargos de assessoria para qualificar o trabalho dos parlamentares.

As fotografias podem estimular uma pesquisa especial também. Há retratos de políticos da época que ainda militam na cena pública já sem as bastas melenas. Há cenas de modelos desfilando alta costura no teatro Dante Barone e imagens da sala da presidência da Assembleia Legislativa sem Getúlio Vargas destacado no centro do ambiente. Naqueles tempos era o rosto de Silveira Martins que estrelava o espaço mais visível da sala – tal como aconteceu na gestão passada (2016) do Parlamento sob a condução de deputada do PP, evidenciando que nada acontece por acaso, na Casa.

O último exemplar da coleção de JK, a edição 69, no 12º ano, traz na capa uma caricatura, de autoria de Michel Drouillon, do mais jovem governador do Brasil, Esperidião Amin, de Santa Catarina, com 35 anos de idade.

Editada por Itacir Rossi e Julio Ungaretti Rossi, a revista conta com uma alentada equipe de repórteres e redatores: Ícaro Cerqueira, Paulo Ricardo Moraes, Aldo Madureira, Saldanha Coelho, Paulo Bandeira de Souza, Itacyr Ungaretti Rossi, Leonardo Roni Fiori, José Rodrigues de Souza, Marli Rodrigues, Maria Lúcia de Oliveira, Jorge Cesar Wamburg, Manuel Canário, Aranha Araújo, Teixeira Veloso, Claudio Dauzacker e, claro, o Jayme Keunecke.

E além do mais, o jornalista conhecido como JK desde que cobriu o Movimento da Legalidade, em 1961,  acompanhou pessoalmente, pelo menos, seis décadas da história política do Brasil e do RS.

(Que o digam Carlos Bastos e Flávio Tavares que seguem ativos na labuta jornalística sem ceder às falsas tentações de ócio de pijama que Jayme também repudiou).

Concordei, enfim, com o reclamo daquela horda de impressos. De que me adiantava ficar com este material em casa, só para mim?

Nada, é claro. O bom é dividir com quem tiver interesse na preservação da memória, pois até como diz o jornalista Fernando Albrecht, repercutindo Ivan Lessa, “de 15 em 15 anos o Brasil esquece os últimos 15 anos”.

Por tudo isto, assim,  decidi que, de fato e de direito, devia doar a coleção de revistas do JK ao próprio Parlamento, motivo central da própria existência da publicação.

Consultei e obtive a adesão da família, da Marlene e dos filhos dela e do JK, Fernanda e Jayme, que tinham me honrado com o presente depois do falecimento do Jayme provavelmente porque estreitei relações no período final da sua jornada profissional, na TV Pampa.

De casa, ele me ligava quase diariamente perguntando por assuntos parlamentares que pudesse comentar nos programas da emissora.

Certamente, os familiares ouviam, com pronunciada constância, o meu nome.

Às terças-feiras, dia em que normalmente ocorrem votações no plenário, JK comparecia na Assembleia e pedia que a coordenadora da Agência de Notícias Sheyla Scardoelli imprimisse uma cópia da ordem do dia da sessão. Com frequência, JK agradecia a gentileza com um afago incomum:  trazia do Mercado Público, uma pequena caixa com doce cristalizado, de abóbora, de figo ou marmelada.

Agora, 47 anos depois do seu nascimento, a revista “Parlamento” está de volta ao seu lugar, à disposição no Memorial do Parlamento, considerado como o mais adequado para ser fonte de consulta para estudiosos, jornalistas e pesquisadores da história, da política e do próprio jornalismo do RS, que conviveu com aqueles idos tenebrosos dos ditos anos de chumbo no Brasil.

.oOo.

André Pereira foi o jornalista presenteado com a coleção pela família da JK.


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