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14 de março de 2019
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18:34

O imediatismo, as tentações e o caráter crítico do saber

Por
Sul 21
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O imediatismo, as tentações e o caráter crítico do saber
O imediatismo, as tentações e o caráter crítico do saber
Adão Villaverde. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Adão Villaverde (*)

São evidentes as tentações da revolução técnico-científica que assolaram o mundo na segunda metade do século passado, que foram aceleradas no descortinar deste e, estenderam-se a todas as áreas das relações humanas em sociedade.

Elas não transformaram apenas as coisas físicas e materiais, modificaram a forma como os indivíduos vivem, trabalham e se relacionam, ou seja, alteraram a vida tal como nós a concebemos e nos habituamos. Consequências naturais desta evolução foram as ascensões de pensadores que ganharam enorme relevância por apanharem as percepções e os impactos das tecnologias nas relações entre as pessoas e de trabalho.

Sobretudo nos desafios de lidar com elas, alguns até sinalizaram que estamos caminhando de forma acelerada para uma enorme contradição: uma sociedade avançada do ponto de vista tecnológico e inovativo e, um modo de vida das pessoas regressivo, desumanizado e sem emoções, que chega as raias da irracionalidade e do nonsense.

Da produção ao ensino, passando pelo trabalho e as políticas protetivas e, chegando à gestão das organizações, em todas as áreas, todos, indistintamente, foram afetados pelas possibilidades de acesso a instrumentos poderosos que as novas ferramentas geradas e desenvolvidas permitem que sejam utilizadas.

No campo da gestão mais especificamente, tanto pública quanto privada, desenvolveram-se conceitos e práticas que reorientaram as organizações e seus processos em todos os níveis, de forma nunca antes vista na sociedade moderna, sobretudo para lidar e acompanhar as mudanças e transformações aceleradas, que aparecem em velocidade exponencial nos nossos cotidianos.

O acolhimento e a aceitação das novas tecnologias permitiram que processos críticos fossem redesenhados, que se evitasse retrabalhos e sobretudo fossem atingidos nas organizações em geral, ganhos econômicos, competitividade, eficiência e resultados, absolutamente inéditos. Com as consequências sociais e sobretudo as decorrências da automação no processo de trabalho tradicional, que nos foi legado pela segunda revolução industrial. Hoje já quase desmantelado em proporções avassaladoras.

Entretanto, para os humanistas, esta constatação e este reconhecimento, não podem estar afastados de alguns valores centrais que façam necessariamente que estejamos sempre compromissados de forma inteira com o processo civilizatório e com a dimensão ética da história humana.

Durante boa parte da história das nossas sociedades, a ética era considerada congênita ao saber. Foi necessária a bomba de Hiroshima e a trágica perpetuação de suas sequelas para que percebêssemos amargamente que o conhecimento não contém naturalmente possibilidades civilizatórias e, despregado da dimensão ética, pode até ser um produtor de barbárie.

Por isso é necessário sempre se agregar a evolução científico-técnica mundializada, a perspectiva crítica do conhecimento, aquele aspecto de rebeldia e de inconformismo do saber diante de uma realidade que se pretende indiscutível e, portadora da penúltima e da última palavra. Realidade muitas vezes embora emudecida de formulações teóricas e esvaziadas de conceitos, diz saber tudo sobre tudo, e, o que é infinitamente mais perverso, sobre todos.

Por isso não devemos acalentar a ideia ingênua de que conhecimento por si só, é um sinônimo de belas intenções e que embalado por naturais virtudes éticas, impulsiona espontaneamente nossos sentimentos e propósitos civilizatórios.

E mesmo que não estejamos diante do fim da história, parece estarmos vivendo o fim de uma era histórica e, estarmos descortinando outra. Ou seja, um futuro que não parecerá nem com o passado que conhecemos, nem com o presente que nos adaptamos e, que nos remete à questão, como pensá-lo, imaginá-lo ou projetá-lo no futuro?

Isto as vezes é tão forte ou tão potente que aforismos de convicções ou de verdades absolutas, que parecem muitas vezes serem irrefutáveis, balançam ou nem param em pé frente aos simples questionamentos:

Qual será o futuro do mundo do trabalho como o concebemos, com a automação crescente e inevitável? Nós nos adaptamos a ele ou ele se adapta a nós? As tecnologias e as inovações vão substituir o ser humano? É evidente que na sua totalidade não, mas quais são os seus alcances e limites? Será que os avanços tecnológicos têm que parar para os humanos se adaptarem a eles? E como eles impactarão a nossa sociedade?

Tomando um conhecido conceito físico chamado ponto de bifurcação, pode se afirmar que estamos numa encruzilhada histórica, onde ainda coabitam o clássico, as tradições, o forjado ao longo de séculos de desenvolvimento da humanidade e, o descortinar e a consolidação de um tempo de disrupção, que interrompe o curso normal dos processos, representando mudanças dramáticas num sistema que aparentemente parecia em equilíbrio estável, ou melhor, em equilíbrio instável. Ou seja, fazendo o fluxo do desenvolvimento andar aceleradamente para um mundo altamente tecnologizado, de um lado, mas desumanizado, de outro.

Fazendo com que quem não se adaptar as mudanças rápidas e recorrentes poderá sucumbir, como já ocorrem com muitas organizações hoje e, exemplos já são fartos neste sentido. Mas também não basta seguir ou adotar conceitos de forma inadvertida, que podem até ser caminhos mais curtos para uma aparente resolução imediata de problemas, mas talvez não sejam os estrategicamente corretos e para um projeto de largo curso e sustentável.

Ou seja, enxergar somente o horizonte imediato, com análises aceleradamente superficiais e impressionistas dos fenômenos tecnológicos e suas decorrências, em detrimento da dimensão mais universal, com avaliações mais criteriosas e mais aprofundadas, pode acabar comprometendo uma visão de futuro.

Portanto a combinação das demandas cotidianas, com um pensar mais estratégico de futuro, colocando o conhecimento e a inovação, sobretudo sua gestão, como eixo central, parece sempre ser o melhor caminho para a interpretação e a produção e a reprodução de ações e iniciativas sobre uma sociedade complexa e em constantes mutações econômicas, sociais e culturais. Que precisará necessariamente se beneficiar destes importantes e inegáveis avanços do nosso tempo, sob pena de amplificar as diferenças e as desigualdades.

Recapturar pois, o caráter crítico do saber e do conhecimento, implica sempre em contrariar lógicas, regras e até o espírito absoluto do tempo em que estamos vivendo, mas pode implicar também, que estejamos nos reencontrando com o processo da razão frente ao voluntarismo imediatista.

E se for permitido explorar novas dimensões conceituais, isso implica talvez na necessidade de atualizar permanentemente o conceito de conhecimento, onde o aprender e o reaprender têm que ser permanente e continuado. Não devendo significar portanto nem a pura submissão a irracionalidade espontânea e, nem ser determinada meramente pela lógica premente e impressionista do cotidiano, ainda que elas não possam ser desprezadas.

(*) Professor, engenheiro, ex-secretário de Estado, ex-presidente da AL/RS e ex-presidente do Fórum Nacional de Secretári@s de CT&I do Brasil

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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