Colunas>Luiz Antonio Timm Grassi
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10 de dezembro de 2012
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08:02

Isto não é uma crítica cinematográfica

Por
Sul 21
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Teerã, 26 de fevereiro de 2011. Depois de alguns dias em viagem pelo interior do Irã, voltamos à capital. Por mais turístico que tenha sido nosso roteiro, experimentamos um mar de sensações: a volta a fontes de nossa civilização em Persépolis e Passárgada, o vislumbre de um povo acolhedor e alegre, a aridez do território compensada pela relação inventiva de um povo para conviver com a natureza, a aproximação de uma cultura refinada e de intenso valor humano e, em contraponto a tudo isso, a sombra de um regime autoritário, fechado e intimidador. Poucos dias no Irã, uma experiência a ser lembrada a vida inteira.

Teerã, 11 de março de 2011. No apartamento onde está confinado há várias semanas, depois de outras na prisão, Jafar Panahi quer saber se sua apelação será atendida, livrando-o da sentença de seis anos de prisão. Quem sabe, mais do que isso, preocupa-o a pena que o proíbe de filmar por vinte anos. Panahi lembra-se dos seus filmes. “O balão branco”, “O círculo”, “O espelho” e “Ouro carmim”, premiados em festivais importantes. O último, “Fora do jogo”, que trata, mais uma vez, da condição feminina reprimida pelo regime, contribuiu bastante para colocá-lo na lista negra dos aiatolás. Além disso, ele participou das manifestações contra o governo, após as eleições de 2009. Agora, depois de filmar cerca de um terço de novo roteiro, sua casa foi invadida e o material confiscado.

Shiraz, 20 de fevereiro de 2011. Visitamos os mausoléus dos poetas Hafez e Saadi, monumentos e jardins de grande beleza. Os poetas são cultuados como santos ou heróis, pelo povo iraniano. Omar Khaian é mais conhecido no Ocidente, mas os dois que visitamos e também Ferdusi são igualmente importantes, ou até mais, para os iranianos. Encontramos grupos de meninas estudantes, alegres, agitadas, querendo falar conosco e ser fotografadas junto com o grupo de brasileiros. Em outra parte da cidade está havendo manifestações contra o regime, ecos do que acontece nos outros países do Oriente Médio. As eleições de 2009, possivelmente fraudadas ainda são contestadas. Contraste: a espontaneidade alegre da juventude iraniana e o clima de opressão política e religiosa.

Teerã, 11 de março de 2011. Panahi procura saber, com sua advogada, quais as chances de sua apelação ser aceita e livrá-lo de suas penas ou diminuí-las. As expectativas não são as melhores. Talvez uma diminuição para dois anos de prisão, mas continuaria a proibição de filmar. Panahi chama um cineasta amigo, Mojtaba Mirtahmasb, que traz uma câmera e começa a filmar. Panahi diz, ironicamente, que não está desobedecendo a sentença, pois o que fazem “não é um filme”… O apartamento é a locação única e obrigatória. Quase todo o tempo, enquanto Mirtahmasb está filmando (“não sou cinegrafista”, diz ele), o único coadjuvante é Iggi, um iguana criado pela filha de Panahi. O bicho é alimentado por Panahi, anda pela casa e pelos móveis, passa pelo corpo do cineasta que reclama (“tuas unhas me machucam”) e, curiosamente, pelos livros de uma estante, como se procurasse alguma coisa… A polícia religiosa anda por todo o país, vasculha cada canto, tem olheiros em cada empresa, órgão público, escola. Libera ou recolhe livros, filmes e toda a obra cultural.

Shiraz, século XII. Uma parábola de Saadi: Perguntaram a um sábio: “Deus criou várias espécies diferentes de árvores e as fez carregarem-se de frutos e multiplicaram-se. Entretanto, nenhuma delas é chamada ‘livre’ como o cipreste. Qual a razão?” Ele respondeu: “Toda árvore floresce, dá frutos e seca segundo as exigências das estações, salvo o cipreste, que está sempre verde e fresco: tal é condição daquilo que é livre”.

Teerã, 11 de março de 2011. Panahi fala do seu projeto proibido e resolve narrá-lo, imaginando uma locação virtual no próprio apartamento, com marcações improvisadas no chão. Porque, como ele diz, “do contrário seria muito enfadonho para o espectador”. Á medida em que o roteiro vai sendo narrado, do fundo do narrador emerge o diretor (e como seria melhor pudéssemos dizer “metteur-en-scene” como os franceses) até o momento em que Panahi é tomado pela emoção e pelo sentimento de impotência: “Se pudéssemos contar um filme, por que faríamos um filme?”. Panahi sai de cena, como se fosse chorar fora de campo. O não-roteirista Panahi teria previsto essa “interpretação”? Importa o quanto Panahi está sendo espontâneo ou estã representando? Em outro momento, o cineasta refere-se às sequências iniciais, quando, aparentemente, está sozinho (quando, evidentemente, já estava sendo filmado), queixando-se de que tudo estivesse preparado. Isto não é um filme ou um filme não é a vida? O cachimbo desenhado por Magritte não é um cachimbo? O filme narrado, o filme imaginado, esse sim não é um filme. Mesmo que não apareça em cena, podemos imaginar Iggi olhando, controlando a impotência de Panahi. Como querendo transbordar os limites de sua prisão, o cineasta traz cenas, em vídeo de filmes anteriores. Em um deles, a menina-atriz rebela-se e deixa de atuar, dentro de um ônibus. O diretor diz: “deixem-na sair” – o cinema, a arte, não podem ser outra prisão, a vida é mais importante.

Isfahã, 24 de fevereiro de 2011. No mercado (bazar) da cidade, uma jovem senhora nos pergunta: “Vocês não tiveram medo de vir à terra de terroristas?”. É o sentimento que parece haver: além da repressão interna, o mal-estar de serem vistos como um povo perigoso, delinquente pelo resto do mundo. Logo depois, um estudante respondia a uma pergunta nossa sobre o incômodo da roupa das mulheres (obrigatória mesmo para as turistas): “São velhas tradições. Esperamos que um dia sejam superadas…”. Nosso guia iraniano, jovem culto e bem informado, acompanhante por todos os locais, nos transmite, a cada passo, a situação que o país vive e as contradições entre os anseios de se expressar e a situação repressiva. A polícia religiosa espreita por toda a parte. A tradição de cantar nos cafés está proibida, mas junto à principal ponte de Isfahã, assistimos a um homem cantar belamente à maneira tradicional, desafiando, como muitos fazem o tempo todo, a repressão. Os cabelos das mulheres não podem aparecer, assim como roupas não devem delinear o corpo feminino, mas por toda a parte veem-se hijabs fazendo força para esvoaçar e calças compondo-se com túnicas para substituir o chador. A transgressão parece fazer parte da vida iraniana. Quem sabe, isso vem de um longo aprendizado histórico.

Tus, cidade do nordeste do Irã, século X. O poeta Ferdusi, após trinta e cinco anos, completa o épico “Livro dos Reis”, reconstituindo a língua persa, proibida desde a conquista árabe. Ferdusi incompatibiliza-se com o Sultão e, no exílio, compõe uma sátira contra o governante. Após quase quatrocentos anos de domínio árabe, o povo iraniano começa a retomar as fontes de sua antiga cultura. Não há opressão que os silencie.

Teerã, 27 de fevereiro de 2011. As ruas já estão decoradas, preparando a festa do Al-Nur, ou Festa do Fogo, que marca o Ano Novo persa. Como os dias que antecedem nosso Natal, há iluminação festiva, as pessoas preparam-se para encontros familiares, ceias, presentes, serão acesas fogueiras e haverá fogos de artifício. A festa tem tradição milenar, de épocas muito anteriores à conquista árabe e á islamização, quando o zoroastrismo era a religião dominante e seu centro era o culto ao fogo.

Teerã, 11 de março de 2011. Panahi tenta retomar a narração do filme proibido. Iggi continua vigilante. Panahi, com seu celular e Mirtahmasb, com a câmera, mostram o exterior, onde cai a noite e começam os festejos do Al-Nur. Fogos começam a iluminar a noite. A TV noticia que a festa desagrada o governo, pois não tem relação com a religião islâmica e que os fogos serão proibidos. Pela janela, veem-se cada vez mais fogos. Panahi e Mirtahmasb revezam-se, filmando-se entre si com a câmera e com o telefone (“como dizemos, cabeleireiros cortam os cabelos uns do outros, quando não têm o que fazer…”). No duelo câmera cinematográfica com telefone celular, a vantagem técnica é evidente para a primeira, mas o que isso interessa? Como diz Mirtahmasb, “a gente depois edita e vê o que vai dar”. Mirtahmasb despede-se, deixando a câmera com Panahi e começa uma nova fase do não-filme. Um jovem vem recolher o lixo e Panahi desce com ele, filmando-o e transgredindo a proibição de não sair do apartamento. Panahi interroga insistentemente o jovem, que diz ser estudante de artes, mas ajuda o cunhado a recolher o lixo dos apartamentos. Desconfiança de Panahi? Ou simpatia por alguém que também não pode dedicar-se ao que gostaria de fazer?

Teerã, 28 de fevereiro de 2012. Deixamos o Irã. Deixamos nosso inteligente e atormentado guia turístico, poeta que “só vai publicar alguma coisa se um dia deixar o país”. Deixamos o povo alegre, receptivo e deixamos o clima de opressão e de pequenas grandes transgressões, onde cineastas criam metáforas sobre metáforas e mesmo assim são perseguidos. Deixamos, sem saber, Panahi enclausurado em seu apartamento, talvez já pensando como escamotear a proibição de fazer um filme. Dentro de poucos dias será o Al-Nur, a Festa do Fogo. Panahi talvez já comece a planejar seu não-filme.

Teerã, 11 de março de 2011. Á entrada do edifício de Panahi, uma fogueira festeja o Al-Nur. Ele não pode sair, mas vê o fogo, ancestral símbolo de seu povo. Panahi encerra seu não-filme. Ao contrário do cachimbo de Magritte, o não-filme de Panahi é um verdadeiro filme e muito mais do que um filme: um libelo, um manifesto, um testemunho, um ato criador. Mais do que o protesto político do perseguido, além do grito de denúncia, é a transcendência da linguagem que faz das dunas do deserto, ondas do mar e extrai, do grão de areia, o brilho do diamante.

(No dia 20 de maio de 2011, “Isto não é um filme” foi projetado em sessão especial, no Festival de Cannes, apresentado pelo seu codiretor Mirtahmasb. Diz-se que o filme foi levado à França em um pendrive escondido em um bolo. Em 15 de outubro do mesmo ano, a condenação de Panahi foi confirmada: seis anos de reclusão, vinte de impedimento de dirigir filmes, escrever roteiros e deixar o país. No último dia 15 de outubro, o presidente do Parlamento Europeu anunciou, em Estrasburgo, o prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento para Jafar Panahi, juntamente com a advogada e defensora dos direitos humanos, também iraniana, Nasrin Sotoudeh. A entrega do prêmio está marcada para o dia 12 de dezembro, mas ambos estão impedidos de recebê-los pessoalmente.)


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