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11 de setembro de 2012
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08:24

Do tempo que (não) passa

Por
Sul 21
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Por Marieta Luce Madeira 1

Sempre que ouvia alguém reclamando do quanto o tempo passa rápido, meu avô dizia “Põe a mão numa chapa quente pra ver se passa rápido!”. Na sua sabedoria, que sempre me acompanhou, chamava a atenção para a relatividade do tempo, elemento sempre fugaz, pois o presente logo é passado e já mira o futuro, sendo tão impreciso quanto preciso.

Recentemente assisti Na Estrada – On the Road, de Walter Salles. O encontro com os personagens de Sal Paradise e Dean Moriarty me fez retomar a questão do tempo, particularmente no que se refere ao período que se levamos para nos aproximarmos de alguém ou de uma ideia, e, por outro lado, o tempo que pode passar até que nos afastemos de alguém, ou que abandonemos uma ideia. Dá no mesmo…

Um poeta pouco conhecido escreveu: “É uma eternidade, é um piscar de olho. É um piscar de olho, é uma eternidade”. Dean é um sujeito fascinante. Sal está num momento muito singular de sua vida, pois acaba de perder o pai. Está um pouco perdido, sem saber por onde seguir. Quer escrever um livro, o que não é pouco, mas é só. Conhece Dean através de um outro amigo, e com ele passa a viver “on the road”, pé na estrada. Viaja pelos Estados Unidos pra lá e pra cá, aproximando-se de Dean, e vivendo, através dele, histórias de amor, de alegria e de dor. Dean é seu norte, sua companhia preferencial. Mas Dean não tem exatamente um norte, Dean vive. Vive ao sabor do vento, experimenta o que se lhe apresenta, nisso incluindo sexo, drogas e jazz. A experiência é incrível pra Sal, que ao andar com Dean vai tecendo notas que registra num bloco-diário. O que Sal não percebe é que Dean não está com Sal do mesmo modo que Sal está com Dean.

O laço que Dean tem é consigo, ele topa todas, indiscriminadamente. Sal não é dessa mesma tribo, ele acredita no laço que faz com Dean. O filme vai alternando, nas experiências, os momentos de encantamento de Sal com o desprendimento de Dean, e os momentos em que ele começa a desencantar-se, como quando formula a pergunta: quem é esse cara? O que ele busca, qual o seu norte?

Os desencantos vêm com experiências das pessoas com quem eles se relacionam: um amigo em comum, que se apaixona por Dean (como resistir?) e diz a Sal da sua decepção amorosa; a amante de Dean, que diz a Sal que ele não cuida, pra nada, dela; a mãe dos filhos de Dean, a quem ele abandona pra tomar mais umas, sair pra noite e curtir com Sal. Cada vez que Dean deixa uma dessas pessoas, Sal assiste ao movimento e parece que uma pulga se refestela na sua orelha, pulga que ele repele, por amor a Dean, por amor ao que Dean aciona no próprio Sal. Quando poderia ele realizar o que se passa nesse laço de amizade? Que tempo leva? Um momento, uma vida? Um piscar de olho, ou uma eternidade?

Um pouco de infância: minha filha pequena, aprendendo a ler, entra um dia na cozinha, pitoca, e lê escrito na nossa geladeira: RE-FRI-GE-RA-DOR. E, ato contínuo, me grita: Mãe, tem um refrigerador na nossa cozinha!!!!! A revelação vem num átimo, o refrigerador, que costumamos chamar de geladeira, se materializou pela letra na frente dela. É um piscar de olho. Quem já viu um pequeno aprender a ler, sabe bem como se dá essa elaboração: é um juntar de letras contínuo, que se dá na rua, nos outdoors, nos elevadores, nas embalagens, nas cozinhas… uma vontade de ler o mundo que pode ser voraz, vontade de ler que por vezes segue vida a fora.

Desse tempo em diante, é desejo de ler que não cessa, uma sede de sentido, de decodificação. Ainda não sabemos (saberemos?) que o mundo não é todo pra ser lido, há o que foge à leitura. O outro é um desses que, por mais que tentemos ler, seguido não nos oferece as letras necessárias, ou deixa faltarem as conexões que precisamos para encontrar o sentido RE-FRI? GERA…DOR?Como assim?

E assim nos apaixonamos, como Sal por Dean. E como Dean por Sal. E queremos saber do outro o que ele quer dizer, o que significa quando ele nos diz “eu te amo”? O que quer ele dizer quando vem? E quando não vem? O que pensa Dean quando deixa Sal à morte, num quarto de pensão precário no México, suando, queimando de febre? O que significa ele dizer: “Pobre Sal, ficou doente. Tenho que voltar para a minha vida. Meu caro e febril Sal, adeus!” Está fazendo o mesmo que fez ao deixar a amante numa entrada de hotel, sabendo que ela, dali, partiria em busca de outro homem? Quem é Sal para Dean? Que tempo leva Sal pra responder esta pergunta? Uma eternidade. Ao reencontrar-se com Dean, depois de longo tempo sem vê-lo, Sal não o acompanha mais na estrada. Escolhe revisitar suas notas, e, a partir delas, escreve, escreve, escreve. E seu texto termina com a frase: “Eu penso em Dean Moriarty. Eu penso em Dean Moriarty.”

“Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, tempo, tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo, tempo, tempo, tempo, tempo (…) peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso, tempo, tempo, tempo, tempo, quando o tempo for propício…”, cantou Caetano Veloso em sua Oração ao tempo. Entrar num acordo com o tempo. Quem sabe, sabe.

Meu avô também gostava de repetir uma máxima que ouvia de sua mãe (e eis que o tempo nos interroga desde sempre): “Para bem conhecer alguém, é preciso comer, juntos, um quilo de sal”. Não sabia (ou saberia?) minha bisavó, que nem comendo juntos um quilo de sal (e um quilo de sal se leva um bom tempo para comer!) é possível conhecer alguém. De todo modo, já é um indicador de tempo outro. Indicador que tenta fugir do tempo cronológico, nos lançando em outro tempo, em outra medida. Estava certo Lacan quando ensinou sobre o tempo lógico: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir; é tempo que foge às regras dos relógios, é tempo sem medida conhecida ou comum entre as gentes. É tempo de cada um, pode ser um piscar de olho, pode ser um quilo de sal, pode ser uma eternidade.

1 Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).


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